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Uma história perdida na noite
"Rainhas da Noite", novo livro de Chico Felitti, resgata as memórias de três travestis que em 40 anos dominaram as ruas do centro de São Paulo
O jornalista Chico Felitti aprendeu a olhar para os cantos e esquinas da cidade invisíveis aos outros. Algumas histórias trazem figuras glamourosas e, possivelmente, muito extravagantes para o seu entorno. E algumas outras, ele investiga o passado apavorante de criminosos, como João de Deus e Margarida Bonetti. Mas o que parece ser o motor de seu trabalho jornalístico é buscar as memórias de personalidades marginalizadas e esquecidas pelo resto da sociedade.
E é isso que ele faz em seu livro Rainhas da Noite – As travestis que tinham São Paulo a seus pés, publicado nesta quinta-feira, 8, pela Cia. Das Letras. Jacqueline Welch, Andréa de Mayo e Cristiane Jordan são as três personagens centrais de sua história. Três travestis que nasceram e viveram em meio à violência, mas que fizeram dela seu instrumento de poder com o passar do tempo. Chico conta que as três desenvolveram uma verdadeira máfia entre as décadas de 1970 e 2010 e comandaram o centro de São Paulo. Contudo, a autoridade delas não se traduziu em visibilidade por parte do Estado. Foram submetidas àquilo que Chico chama de apagamento arquival.
Para Elástica, ele relata as dificuldades de apurar histórias dessas três mulheres, que não existem em documentos oficiais, e que se mantêm vivas na noite, pela oralidade daquelas que vivem nas margens da sociedade, num universo distante e estranho para a maioria.
Neste novo livro, como já aconteceu em outras obras suas, você lida com a invisibilidade de algumas figuras. Sendo assim, como a história dessas três mulheres saiu das sombras e chegou até você?
Foi um banho-maria, demorou muito tempo. Vim para São Paulo com 17 anos e frequentava muito essa noite decadente do Arouche, da Rua Aurora e da Rua Vitória, onde estão os resquícios dessa história, 30, 40 anos depois. Fui me aproximando da Kaká di Polly, da Marcinha da Corintho, da Claudia Edson. No passar dos anos, elas iam me dando fiapos de história. Diziam “a finada Jacqueline Blábláblá era pesadona e tinha um bordel e mandava matar e todo mundo tinha medo dela”, mas era tudo muito por cima. Era uma história meio de nomes, flutuando.
A única que eu conhecia era a Andréa de Mayo porque tem vídeos dela no YouTube. E tem um documentário que chama “Quem tem medo de Cris Negão?”, um curta-metragem que cobre um pouco a história da Cris. Então, conhecia um pouquinho a história delas, mas achava que valia investigar mais, abrir o escopo e contar mais aprofundadamente a história delas, que estava muito pulverizada. Quando decidi ir atrás de quem era Jacqueline, percebi que a história das três, de alguma maneira, se ligava. Por mais que elas não tivessem a mesma idade, nem tivessem o mesmo trabalho, tinha uma coisa que unia as três, que foi ter conquistado muito poder e muita proeminência ali no centro, nas décadas de 1980 e 90.
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E quando o desejo de retomar essas histórias reapareceu?
Foi muito maluco porque foi por conta da pandemia. Tudo fechou, estava todo mundo trancado em casa e eu pensei: “agora estou com tempo”. Sabia que seria uma apuração longa, que exigiria muitas conversas, e que eu não conseguiria encontrá-las pessoalmente porque muitas moram na Europa. Ou seja: estar trancado em casa me permitiria fazer o grosso desse trabalho, e foi isso que aconteceu.
E teve também um marco muito importante para mim, que foi a morte da Biá. A Miss Biá foi a primeira pessoa que entrevistei para esse livro. E nós perdemos ela para a Covid. Daí eu me dei conta que talvez essa história ia ficar cada vez mais difícil de ser contada. Essas pessoas já têm uma certa idade. Algumas delas foram morrendo com o tempo. E isso me deu um senso de pressa: “Eu preciso fazer isso o mais rápido possível para ser o mais completo possível.”
“Todas elas estavam ligadas com o mercado de sexo. Criaram opulência e glamour em cima de um mundo que parecia estar ruindo. Elas criaram uma estrutura nova de poder e até de defesa. Eram um Estado onde não havia Estado”
E como você soube da morte dela?
Eu estava em bastante contato com a Biá e ela foi internada, chegou a ser entubada, se recuperou e recebeu alta. Todo mundo comemorou na época. Eu lembro até de ter feito um post no Instagram falando ‘vamos celebrar as pessoas em vida, não vamos esperar ela morrer para depois dizer como ela foi importante’. Duas semanas depois ela teve uma embolia, provavelmente ainda um resquício da Covid, e morreu em casa.
Acho que, a essa altura, ninguém duvida das suas habilidades investigativas. Mas o que foi necessário para conseguir levantar as informações que você precisava?
Foi um processo de convencimento interno e também de convencimento do mercado editorial de que essa era uma história oral. E que se a gente fosse cobrar o mesmo rigor e o mesmo tipo de documento que se espera de uma biografia ou de um livro reportagem de pessoas que não são tão marginalizadas [quanto as personagens desse livro], esse livro não ia sair porque simplesmente não existem registros. Eram pessoas que estavam tão à margem da sociedade que não tinha notícia de jornal, não tinha documento. Muitas delas não tinham nem RG.
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Então, era acreditar que essa história podia ser contada numa tessitura de oralidade. Eu ia entrevistar o maior número de pessoas possível, por maior tempo possível e, a partir do relato delas, reconstruir esse mundo, mesmo carecendo muito de documento. É uma coisa que lutei muito. Eu buscava em todo lugar, em todos os arquivos públicos e só encontrei uma foto da Jacqueline em arquivo oficial, uma foto do velório dela.
De resto, era só foto de acervo pessoal, das pessoas que conheceram ela em festa e tal. Então passou muito longe dos registros oficiais dessa história. Essa foi a maior dificuldade.
Uma curiosidade de jornalista para jornalista: quando você sabe que seu trabalho está encerrado? É uma determinação contratual ou há também fatores concretos para você fechar sua apuração?
Tem um termômetro do peru que salta quando o peru está pronto. Para mim, é um processo que é muito parecido. Com o tempo, fui reconhecendo que é mais ou menos assim: eu começo no escuro e no pleno desespero, daí vivo no desespero tentando absorver o máximo que consigo. Nesse momento, tento entrevistar o máximo de gente e tentar me afogar naquele universo de informação. Mas sempre inseguro, sempre em pânico, até que de repente estou tão soterrado de informações, que vem uma sensação de “Temos”, sabe?
E é literalmente isso, vira uma chavinha para mim. Isso aconteceu em todos os meus livros e podcasts. De repente, me dou conta de que existe uma história. E após cinco, seis meses de investigação, ou até um pouco mais, de repente você para e pensa “talvez eu já conheça bem suficiente essa história para contá-la”.
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Mas não é um processo paulatino para mim, é uma viradinha de chave mesmo. O desespero é frequente, de pensar “não vou conseguir, não temos, não temos”. Daí um dia eu acordo, olho para tudo que tenho, escuto as entrevistas e falo “porra, temos”.
É intuitivo?
100%. Adoraria que fosse mais metódico, mais organizado e menos caótico, mas é 100% intuitivo e caótico.
Outra característica das suas obras é a conexão que você enfatiza das personagens com o local em que vivem. São Paulo é o cenário central. Qual a importância que elas tiveram para a cidade?
É uma cidade em convulsão, uma cidade que muda muito nesse período. O centro estava deixando de ser um bairro nobre da cidade, estava decaindo, e parte da decadência veio devido ao mercado de sexo. Todas elas estavam ligadas, de alguma maneira, com o mercado de sexo. Criaram opulência e glamour em cima de um mundo que parecia estar ruindo. Elas criaram uma estrutura nova de poder e até de defesa.
Penso muito na Cristiane Jordan como uma polícia paralela porque a polícia não ia defender aquelas pessoas, então precisavam de alguém para defendê-las. É como se fosse um Estado paralelo mesmo, por isso que eu não me oponho ao uso de máfia, porque era uma máfia.Era um Estado paralelo que dava alojamento, que ajudava com serviço social – como no caso em que elas ajudaram financeiramente a Brenda Lee ou quando a Cris dá dinheiro para a Lenka Saad, que está morrendo de AIDS. E tudo isso deveria ser uma atribuição do Estado. Elas eram um Estado onde não havia Estado.
“Uma preocupação que permeou todo o processo do livro era não contar uma versão enxuta da história, mas a história inteira, para entender o máximo possível. Essas pessoas eram complexas, não eram só más”
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Durante esse processo, teve algum elemento surpresa na história, que saltou aos seus olhos?
Teve sim. Acho que a minha maior preocupação era não ser uma apuração rasa que mostrasse só a bandidagem, sabe? Porque a bandidagem era fácil de achar. Por mais que muita gente não tenha topado dar entrevista falando sobre os crimes, eles abundavam. O que me faltava era o aspecto mais humano da vida dessas pessoas e que foi mais difícil de encontrar.
A Andréa de Mayo não foi só ruim, ela ajudou muita gente. Ela foi humana, ela colocou uma pessoa em situação análoga à escravidão na casa dela e eu encontrei essa pessoa e coloquei no livro. Isso existiu, mas ela também vai lá e angaria dinheiro para a Brenda Lee cuidar de pessoas que tinham HIV/Aids.
A Cris bateu em muita gente, tirou o dinheiro de muita gente, mas aí tem aquela cena em que ela entrega um envelope com um lenço da Versace, que ninguém sabe se era original ou falsificado, cheio de dólares, para uma pessoa que estava morrendo e passando necessidades.
Uma preocupação muito grande que permeou esse processo todo era não contar uma versão enxuta da história, e sim contar a história inteira para gente entender o máximo possível. Essas pessoas eram complexas, não eram só más.
E são pessoas que nascem em meio à violência, né?
Contando a gênese delas, fica muito evidente para onde elas foram. Como esperar que a Cristiane Jordan tivesse outro desfecho, se aquele que ela teve foi um sucesso dentro das possibilidades, dentro do que tinha desenhado para ela?
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Uma pessoa expulsa de casa, que começa a ser aliciada e começa a ser explorada sexualmente aos 12 anos… o que essa pessoa vai fazer? Ela vai fazer faculdade e virar CEO de uma empresa? Sendo que ela não é aceita nem mesmo dentro de um táxi, que se recusavam a parar para ela. Acho que aquilo que ela conseguiu, dentro do que se esperava para elas, foi um puta de um sucesso.
O que você espera que os leitores tirem desse livro?
Se eu criar uma casinha simbólica na mente de quem leu, estou muito feliz. Acho que faltam histórias desse universo para nós, faltam referências. Então, se você parar para pensar que existiram três travestis que tiveram muita grana, que foram temidas, que criaram lendas – porque cada uma delas era uma lenda nesse mundo –, a gente vai ter um lugar novo para visitar na nossa mente. A gente vai ter uma história nova e a nossa vida é feita de histórias.
Nossa percepção do mundo é feita assim. Então, se a gente souber que isso existiu e que pode existir de novo, ou que podem ter outros papéis para esse tipo de gente, que ainda é tão marginalizada, eu acho que a gente já muda um pouco o futuro. A gente muda o futuro contando o passado.
Rainhas da Noite – As travestis que tinham São Paulo a seus pés
Autor: Chico Felitti
Editora: Cia das Letras
256 págs, R$65
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