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Você precisa escutar “A Mulher da Casa Abandonada”

O podcast mais ouvido do momento evidencia uma das maiores chagas do Brasil: a escravidão contemporânea existe, e está perto de nós
por Alexandre Makhlouf
6.07.2022
17h40
capa do podcast a mulher da casa abandonada
a mulher da casa abandonada/Reprodução
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Nas mesas de bar, nos corredores dos supermercados, nos maiores portais de notícia do país e nas redes sociais, um tópico parece dominar as discussões: A Mulher da Casa Abandonada. Esse é o nome do podcast da Folha de S. Paulo criado pelo jornalista Chico Felitti para denunciar um caso grave, surreal e estapafúrdio: a história de como a brasileira Margarida Bonetti e seu marido, Rene Bonetti, mantiveram uma mulher negra em condições de trabalho análogos à escravidão por mais de 20 anos nos Estados Unidos. Margarida é, hoje, procurada pelo FBI e fugitiva da justiça norte-americana há quase 20 anos, mas viveu todo esse tempo em uma mansão abandonada de sua família no bairro de Higienópolis, em São Paulo.

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(Arte/Redação)

O podcast, lançado no dia 8 de junho, há menos de um mês, já tem cinco episódios no ar e não é apenas mais uma obsessão da internet. Com um trabalho jornalístico primoroso, daqueles difíceis de encontrar atualmente, Chico investiga essa história de escravidão contemporânea com responsabilidade e cuidado, viajou para os Estados Unidos e encontrou vizinhos da família Bonetti que testemunharam o caso e cercou-se de informação para contar sua história. Não se deixe enganar pela aura de “causo” e de história bem contada, cheia de reviravoltas: Chico conduz muito bem a narração, claro, mas estamos falando de uma profunda e importante série de reportagens jornalísticas, e não de qualquer outro gênero.

Depois de conquistar uma legião de fãs, ganhar grupos no Telegram com milhares de pessoas e perfis no Instagram e no TikTok dedicados a repercutir o que é contado em cada episódio, A Mulher da Casa Abandonada teve divulgado, nesta quarta-feira, 6, talvez o episódio mais importante da temporada inteira. No quinto episódio, intitulado “Outras Tantas Mulheres”, Chico dá uma pausa no relato sobre o crime de Margarida Bonetti para revelar que mulheres negras trabalharem em condições análogas à escravidão ainda é algo real e, infelizmente, mais comum do que imaginamos.

O podcast revisita a história de Madalena Gordiano, que foi escravizada desde os 8 anos de idade, e vai até ela para ouvir detalhes da história de terror que ela viveu. Para quem, como eu, já ouviu todos os episódios de AMDCA, é chocante, revoltante e triste de ver que as histórias, ainda que tenham acontecido em cidades e até países diferentes, se assemelham pelos maus tratos, pela crueldade e pelo racismo que se embrenha em todas elas

“Esse episódio faz um passeio pelo Brasil antes de voltar para Higienópolis. O Brasil é um dos vencedores no quesito escravidão contemporânea, então é importante deixar claro que o caso dos Bonetti é chocante, mas está longe de ser o único. O Brasil tem histórico em escravizar pessoas e pessoas de um perfil específico: mulheres pretas, pobres e sem instrução formal. Essa história, no fundo, é sobre isso”, pontua Chico em suas redes sociais.

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Jornalismo e justiça 

Junto com o sucesso de A Mulher da Casa Abandonada, outro fenômeno pode ser observado nas redes sociais e nas ruas de Higienópolis – mais especificamente na rua da casa abandonada, que não vamos falar qual é por um motivo que ficará óbvio na próxima frase. Conforme o podcast foi crescendo e ficando mais conhecido, o endereço de Margarida Bonetti se tornou público e muita gente se dirigiu à porta da casa para gravar vídeos, tentar ver a mulher criminosa que cobre o rosto de pomada branca e até produzir um conteúdo para as próprias redes, surfando no assunto mais falado do momento. Até pichar o nome da vítima no portão da casa abandonada aconteceu, deixando claro que, para quem tem esse tipo de atitude, a identidade que Chico e a Folha preservaram até agora importa bem menos do que uma chuva de likes.

“O caso dos Bonetti é chocante, mas está longe de ser o único. O Brasil tem histórico em escravizar pessoas e pessoas de um perfil específico: mulheres pretas, pobres e sem instrução formal. Essa história, no fundo, é sobre isso”

Chico Felitti

Por conta disso, no episódio dessa semana, um trecho também antecede a narração dos fatos: “Esse podcast é uma reportagem que se baseou em registros de um caso de notório interesse público. A equipe procurou ouvir todos os envolvidos e deu espaço às versões dos que se manifestaram. Essa série não é uma investigação policial nem um processo judicial. A Folha condena qualquer tipo de agressão ou perseguição contra as pessoas aqui retratadas”. 

Em uma sociedade que entende o papel do jornalismo e o respeita, que sabe recebê-lo e interagir com ele, o aviso a seguir não seria preciso. Mas, vocês sabem, é preciso falar. Jornalismo, por si só, não é justiça. Não tem o intuito de condenar e nem de dar a outros civis o poder de tomar decisões com as próprias mãos sobre a integridade e o futuro de outra pessoa – ainda que ela seja uma escravocrata, racista e detestável em infinitas camadas. O jornalismo traz à luz o que é de interesse público, é importante para que as autoridades responsáveis fiquem cientes de casos que talvez não tenham sido denunciados, claro, mas não está a serviço de uma população justiceira, que quer tomar decisões com as próprias mãos.

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Aos indignados, em especial aos brancos indignados, como eu, fica o lembrete: praticamente toda a vizinhança de Margarida Bonetti sabia de seus crimes, mas não denunciou nada e conviveu pacificamente com a vizinha escravocrata. Apesar da nossa veia-true-crime-tik-toker-eu-preciso-tomar-uma-atitude, que perpassa toda uma geração, quem escolheu permanecer ficar no anonimato foi a vítima de Margarida e Renê, e não cabe a nenhum de nós infringir esse direito apenas para saciar uma curiosidade.

Se a gente recomenda que você ouça A Mulher da Casa Abandonada? Sem sombra de dúvida. Mostre para os amigos, para a família, fale sobre o caso e entenda o tamanho do buraco que é morar em um país com num dos maiores números de denúncias de trabalho análogo à escravidão do mundo. Mas, se a mãozinha coçar para saber mais e bater a vontade de sair da sua casa e ir até a porta da mansão tentar flagrar algo que ninguém ainda flagrou, saiba que você entendeu tudo errado.

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