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Falta de caráter interestelar

O que eu aprendi roubando, mentindo e distribuindo tiros pela galáxia em The Outer Worlds

por Artur Tavares Atualizado em 19 jun 2020, 20h19 - Publicado em 8 jun 2020 09h45
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(Clube Lambada/Ilustração)

urante a quarentena, encontrei algum tempo livre para colocar em dia alguns jogos bastante longos que eu havia deixado passar devido à minha rotina usual, e um deles foi o ambicioso The Outer Worlds, lançado no final do ano passado, e que ganhou, na última sexta-feira, 5, uma versão para Nintendo Switch. RPG de temática sci-fi e gráficos maravilhosos, o game chamou a atenção da crítica e do público também por seu enredo bem-humorado, algo bastante raro quando estamos falando de histórias complexas e imersivas, que coloca o jogador à frente de uma trama complexa envolvendo corporações. Se normalmente estamos acostumados com histórias heroicas, em The Outer Worlds o verdadeiro beneficiado é quem tem menos compasso moral.

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(The Outer Worlds/Reprodução)

Na galáxia de The Outer Worlds, as leis antitruste nunca foram aprovadas na Terra durante o século 20 – como em nossa realidade –, e por isso parte do universo foi colonizado por um conglomerado de dez corporações que formam a Bonança, uma empresa privada que tomou o lugar da política tradicional. A história começa quando uma nave-colônia chamada Esperança, que se acreditava estar perdida há muito tempo, é invadida por Phineas Welles, o arquétipo perfeito do cientista maluco, cujo plano é acordar você, jogador, para integrar uma trama que pretende virar o universo de ponta cabeça, e derrubar a empresa “multiplanetária” no meio do caminho.

No início tudo é muito nebuloso, e o jogador principal não consegue entender porque foi o único colono tirado do estado de criogênese da Esperança por Phineas. Logo fica claro que o cientista é um fugitivo procurado por agentes da Bonança pelo crime de traição. Pego no fogo cruzado, você assume o comando da Falível, a nave de um certo capitão Alex Hawthorne, morto em circunstâncias estranhas no planeta Monarca.

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“Peguei a Falível e me mandei antes que eu mudasse de ideia e metesse umas balas na cara da velha traiçoeira”

A introdução em Monarca dá tom do que está por vir durante todo o decorrer de The Outer Worlds. O primeiro conflito que você enfrenta envolve uma usina geotérmica que sustenta a energia do Vale Esmeralda, uma região de operários do planeta. Uma revolucionária chamada Adelaide tem planos de sobrepujar o poder do conselho da Bonança em Monarca, enquanto um burocrata chamado Reed quer sua ajuda para manter o poder por lá.

Salvar uma cidade inteira ou ajudar revolucionários contra a desigualdade social? Não foi difícil escolher. Acreditando na benevolência de Adelaide, decidi auxiliá-la. Só não contava com a reviravolta Orwelliana – e de praticamente todas os levantes sociais – que me aguardava. Quando tomou o poder, Adelaide passou a decidir quem viveria e morreria no Vale Esmeralda sob seu comando. No ínterim, adquiri dois companheiros para meu grupo, a mecânica de naves Parvati e o ex-presidiário e agora pastor Vigário Max, que me acompanhariam até o fim pela galáxia. Peguei a Falível e me mandei antes que eu mudasse de ideia e metesse umas balas na cara da velha traiçoeira.

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Só que daí em diante, tudo o que eu encontrei nos outros planetas que visitei foi a pura trairagem. Sem muito compasso moral, fui resolvendo partes da história que ajudavam Phineas em seu plano maluco de derrubar a Bonança, ao mesmo tempo em que fiquei ao lado da corporação na caça ao cientista, no melhor estilo agente duplo; um movimento que me permitia entender os dois lados do conflito.

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(The Outer Worlds/Reprodução)

Entre estúpidos bem-intencionados e bandidos inescrupulosos

A partir da saída de Monarca, o jogador de The Outer Worlds ganha a opção de visitar os mais diversos rincões da galáxia dominada pela Bonança, e o retrato desse futuro distópico não é dos melhores. A maioria dos planetas colonizados, como Cila e a Terra-2, não passam de enormes subúrbios de baixa infraestrutura. As poucas cidades têm arquitetura primitiva, com casas muitas vezes substituídas por contêineres de aço brilhante, bares repletos de bêbados, drogados e pistoleiros, ignorantes funcionais mantidos sob o domínio da corporação através de um ciclo interminável de trabalho e consumo de futilidades, esportes e novelas. A exceção é o planeta-sede da Bonança, Bizâncio, cuja arquitetura de metal e vidro imponente leva o Art Déco a outro nível. Lugar de burocratas, Bizâncio tem toda uma população sustentada pela renda dos outros planetas, que desconhece o que é trabalho, gastando seu tempo em restaurante caros sendo servidos por robôs menos estúpidos que os próprios humanos de outros lugares.

Enquanto a história principal me levava ao conflito inevitável entre Phineas e a Bonança, as side quests muitas vezes me colocaram ao lado de foras da lei de interesses escusos. Ajudei uma mulher chamada Cassandra a fugir com experimentos científicos e destruí os resultados adquiridos pelo cientista roubado só pela diversão; participei de um teste de elenco para uma novela interestelar e, quando matei todos os outros atores a sangue frio, fui premiado com uma vaga na novela devido ao meu estilo brutamontes; forjei a morte de um cara chamado Tucker após sua mãe coruja me pedir para encontrá-lo, só porque ela era chata demais.

“Participei de um teste de elenco para uma novela interestelar e, quando matei todos os outros atores a sangue frio, fui premiado com uma vaga na novela devido ao meu estilo brutamontes”

Se cada vez que eu fazia algo de errado o resultado era um prêmio aos olhos da sociedade, não deixei minha benevolência de lado sempre que a tarefa era ajudar algum dos meus colegas de Falível. Fui cupido de Parvati com a também mecânica Junlei Tennyson, porque não resisto a um amor lésbico (agora, pensando bem, seria mesmo compasso moral ou só fetiche?); auxiliei o Vigário Max a encontrar o sentido da vida – nenhum, é claro – após uma sessão de contato com o sobrenatural; vasculhei a galáxia atrás dos túmulos dos mercenários que faziam parte do antigo time de Nyoka.

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Mas nada me deu mais prazer em toda a experiência de The Outer Worlds do que, no melhor estilo Robin Hood, roubar a fortuna dos pais da minha tripulante Ellie, uma riquinha nascida em Bizâncio que decidiu virar pirata espacial só pela diversão. Envergonhados pelo espírito rebelde da menina, eles fingiram para seus amigos burgueses que a filha havia morrido em uma queda na escada de casa, quando um dos saltos de seus sapatos quebrou, e aproveitaram a oportunidade para sacar toda sua herança do banco no meio do caminho. Ladrão que ajuda ladrão tem 100 anos de perdão.

Aliás, Bizâncio me reservou um outro grande momento. Uma jovem sonhadora chamada Hortense Ingalsbee me abordou num banco da praça pedindo que eu investigasse o “setor de aposentadoria” do planeta, um lugar tido como mítico. Ela queria saber o que havia de tão especial naquele lugar, onde, dizia a lenda, velhos iam para aproveitar seus melhores anos cercados de riquezas inimagináveis. O que eu encontrei? Uma sala cheia de robôs assassinos, é claro. O setor de aposentadoria não passava de um matadouro, a solução perfeita para manter a população jovem, sem que a Bonança precisasse despender um centavo sequer em bem-estar social. Não resisti, e menti para Hortense: “é um lugar todo feito de ouro, com uma fonte infinita de vodca na praça central. E o melhor, você pode ir para lá agora.” Tchauzinho, garota cega pela riqueza. Me vinguei no jogo por todas as caras de blogueiras fúteis que não posso socar na vida real.

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(The Outer Worlds/Reprodução)

No final das contas…

Depois de tocar o terror pela galáxia, sabotar uma série de fábricas, e transformar Monarca em um estacionamento para naves espaciais – sim, eu me vinguei de Adelaide –, The Outer Worlds estava chegando ao fim com uma escolha de Sofia: ajudar Phineas ou a Bonança. Nesse ponto, já havia descoberto a trama principal. O conselho sabia que suas atividades econômicas predatórias levariam toda a população das colônias à morte por fome, e queria forçar parte da mão de obra saudável ao mesmo estado de criogênese dos colonos da Esperança. O cientista, que outrora participou do plano, queria derrubar a empresa e todo o sistema socioeconômico imposto, ao mesmo tempo que acordaria todo o resto da população da Esperança – artistas, cientistas, intelectuais muito melhor capacitados do que qualquer burocrata no poder.

Toda a trajetória sem caráter no jogo e minha própria ideologia de vida me levaram a ficar do lado de Phineas. Quis saber, afinal, como seria nosso futuro se pelo menos uma vez a economia não falasse mais alto que a vida dos seres humanos e do(s) planeta(s). Derrubamos a Bonança e repovoamos a galáxia. Deu tudo certo, menos para os habitantes de Bizâncio, que foram sobrepujados e precisaram aprender o que era trabalhar para sobreviver.

“Tchauzinho, garota cega pela riqueza. Me vinguei no jogo por todas as caras de blogueiras fúteis que não posso socar na vida real”

É claro que, em jogos como The Outer Worlds, havia outras opções de finais disponíveis. A mais óbvia era, claro, a permanência da Bonança como detentora da ordem interplanetária. O futuro, é claro, não foi dos melhores. Depois, descobri de uma outra escolha bastante interessante, que só consigo resumir de uma maneira: tocar o foda-se. No momento da escolha entre Phineas e a Bonança, você pode simplesmente colocar sua nave em rota para o Sol, matar a si mesmo e seus companheiros, e nunca saber que raios aconteceu depois. Reconfortante, de certo modo.

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Mesmo com seu humor ácido, The Outer Worlds não deixa de ser como toda boa história de ficção científica: uma crítica dos nossos tempos sob a ótica de uma situação futurística. Se na Era de Prata do gênero Asimov olhou para a robótica e para a política totalitarista como ameaças a serem enfrentadas, e Philip K. Dick alertou sobre o abuso de substâncias psicoativas como fugas da realidade, nessa obra-prima do começo do século 21 as temáticas mais latentes são sobre os riscos que o individualismo podem ter sobre toda a sociedade, sobre como em nossos tempos o oportunismo sem ética, travestido de inteligência, é recompensado, e sobre como o mito do trabalho enobrecer o homem não passa, na verdade, de uma maneira de tapar os olhos para a realidade que bate diariamente em nossa porta. E, claro, de como a esperança sempre está na mente daqueles que criam e desejam o progresso de todos a fim de um futuro melhor.

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