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Teresa Cristina: “O samba me escolheu”

A cantora conversou conosco sobre como é ser uma mulher sambista, o que acha da política nacional e, claro, suas famosas lives

por Beatriz Lourenço Atualizado em 9 mar 2022, 23h26 - Publicado em 10 mar 2022 00h01
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(Clube Lambada/Ilustração)

samba começou na casa de uma mulher negra, ​​Tia Ciata, entre o final do século 19 e início do 20. Era uma mulher forte, trabalhadora e que carregava consigo as tradições africanas. Sabe-se que no quintal de sua casa foi criada a letra da música “Pelo Telefone”, de autoria de Donga e Mauro de Almeida. De lá para cá, o ritmo cresceu e se tornou o símbolo do Brasil. Já as mulheres sambistas perderam o protagonismo por conta do machismo enraizado na sociedade.

Porém, a visibilidade feminina está sendo retomada com grandes nomes da música popular. Um deles é Teresa Cristina, que começou sua vida artística em 1997, quando homenageou Candeia no Bar Semente, no Rio de Janeiro. Nesse momento, ela estava cursando Letras na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), onde participou do movimento estudantil. Porém, sua carreira passou a crescer rapidamente: lançou álbuns, fez turnês mundiais e foi responsável pela abertura dos shows de Caetano Veloso.

No entanto, foi na pandemia que seu nome ecoou. Isso porque ela usou a ferramenta de lives, no Instagram e no Youtube, para se conectar com o público e mostrar seu trabalho. Elas aconteceram todos os dias ao longo de um ano – foram mais de 900 horas ao vivo. Teresa ficou conhecida como a “Rainha das Lives”. O sucesso foi tanto que a sequência de exibições rendeu à cantora sua primeira indicação ao Prêmio MTV MIAW 2020, na categoria “Live Pra Tudo”.

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“Foi uma conquista porque é um contato direto com meu público e com quem não conhecia meu trabalho. Essa experiência foi importantíssima e se tornou algo que não abro mão”, afirma à Elástica. “Acho importante poder ouvir as pessoas e saber a opinião delas sobre o que estou produzindo.” No ao vivo, ela contava histórias de sua vida, cantava e recebia convidados especiais, como Gilberto Gil, Gal Costa, Simone e João Bosco.

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Além disso, comentava a dificuldade de conseguir patrocínio – talvez por conta do número de seguidores ou pelo racismo e machismo estruturais que dificultam o crescimento econômico das mulheres negras. “Só entendo o que acontece comigo quando vejo mulheres com o perfil próximo ao meu, passando pelas mesmas dificuldades que eu passo. E isso me entristece. Conheço poucas mulheres negras que têm patrocínio para fazer o que elas quiserem”, afirma.

É pensando nisso que Teresa abre espaço para que elas possam brilhar em seu show, intitulado “Sorriso Negro”. Em fevereiro, ele aconteceu na Casa Natura Musical. No evento, a artista mistura a música com a trajetória do negro no Brasil – dando uma aula de história e de samba. Pensando na importância de seu nome na cultura do país, chamamos Teresa Cristina para um bate-papo sobre política, carreira e internet.

“Foi uma conquista porque é um contato direto com meu público e com quem não conhecia meu trabalho. Essa experiência foi importantíssima e se tornou algo que não abro mão. Acho importante poder ouvir as pessoas e saber a opinião delas sobre o que estou produzindo.”

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Visibilidade feminina no Samba
Visibilidade feminina no Samba (Fernanda Garcia/Divulgação)

Como surgiu sua relação com o samba?
Na verdade, foi o samba que me escolheu, não sei se eu escolhi o samba. Eu ouvia a música do Candeia desde criança através do meu pai. Quando tinha entre 25 e 26 anos, reencontrei sua obra e fiquei muito emocionada com a qualidade do som e com a mensagem que ele passava. A partir dessa pesquisa, comecei a pesquisar mais sobre samba. Nisso, eu conheci a Velha Guarda da Portela e o violinista, Guaraci, me indicou para cantar numa casa de música ao vivo na Lapa – o Bar Semente. Lá, me envolvi mais com a música, aumentei meu repertório e comecei a compor. As coisas foram acontecendo num ritmo muito rápido! Quando vi, fui chamada para gravar um álbum cantando Paulinho da Viola e, a partir dali, já estava totalmente envolvida.

Ouça Teresa Cristina

Você passou pelo curso de Letras na UERJ e fez parte do movimento estudantil. Como isso te transformou e contribuiu com a sua música?
Não cheguei a me formar, estudei até o sexto período porque comecei a viajar por conta dos shows, então tive que sair. Lá ocorreram meus primeiros entendimentos sobre política, o Brasil, a relação entre os poderes e entre a classe dominante e a classe a qual eu pertencia. Quando entrei, era contra cotas – já me entendia como negra naquela época, mas completamente alienada. O movimento estudantil, por sua vez, foi me moldando e fui aprendendo através de muita leitura e de troca de conhecimento. Na época, os estudantes lutavam pela autonomia da universidade, pelo orçamento maior e contra o Ministro da Educação Jorge Bornhausen, um banqueiro que queria privatizar a faculdade. Todas essas lutas que até hoje a gente continua fazendo, já estavam acentuadas lá atrás. A UERJ me fez a pessoa que sou hoje.

Visibilidade feminina no Samba
Visibilidade feminina no Samba (Ricardo Borges/Divulgação)

Você já comentou que não é possível separar o samba de política. De que forma seu som aborda essas discussões?
Separar o samba da política é como separar o corpo humano de suas veias, não é possível. O samba nasceu porque existe a política, existe uma contestação e alguém inconformado com algum tipo de situação. Acho essa ideia completamente descabida, um não vive sem o outro. Acredito, inclusive, que o samba existe para que a gente consiga viver melhor e para que a gente entenda o Brasil como ele é. 

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“Separar o samba da política é como separar o corpo humano de suas veias, não é possível. O samba nasceu porque existe a política, existe uma contestação e alguém inconformado com algum tipo de situação. O samba existe para que a gente consiga viver melhor e para que a gente entenda o Brasil como ele é”

Você já realizou cerca de 300 lives entre Instagram e YouTube. Como está sendo a experiência de se conectar com o público através da internet?
Fiz live todos os dias desde março de 2020 até março de 2021. Quando comecei, era uma ferramenta muito nova para mim. E foi uma conquista porque é um contato direto com meu público e com quem não conhecia meu trabalho. Essa experiência foi importantíssima e se tornou algo que não abro mão. Acho importante poder ouvir as pessoas e saber a opinião delas sobre o que estou produzindo.

Tive contato com muitos artistas brasileiros e pessoas que admiro. Nesse meio tempo, também ocorreram situações completamente adversas: estava fazendo a live e a luz acabou, uma barata entrou no meu quarto e eu fiz um escândalo… Foi uma vivência muito importante. São coisas que não vou esquecer.

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Visibilidade feminina no Samba
Visibilidade feminina no Samba (Ricardo Borges/Divulgação)

Você já disse também que não gosta de tocar para “bolsominions”.
Tenho um bordão que é: ‘minha live, minhas regras’. Eu estava na minha casa, dividindo meu espaço, minhas madrugadas e entregando meu conhecimento sobre samba, música brasileira e cultura. Não queria gastar meu tempo com bolsominion. A gente passou por várias fases desde que esse homem foi eleito até hoje. É inadmissível defender ele – gente que faz isso bom caráter não é. Não tenho paciência para aturar esse tipo de desinformação. Parece um olhar muito egoísta e vai de encontro com tudo que acredito. Não acho que para melhorar o Brasil a gente tem que se armar, não acredito que esse homem chegou ao poder para acabar com a mamata ou a corrupção.

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Pegando esse gancho, você acredita que o setor cultural precisa se posicionar nas eleições deste ano?
A arte existe para contestar, não somente para retratar. Ela pode fotografar uma época, uma década, o momento… E se a arte fala de um momento, se está conversando com o tempo dela ou com tempos atrás, como é que ela não vai falar de política? Como não vai falar de dominação? Como não vai falar do poder? Ou de misoginia, preconceito, injustiça, genocídio? A arte tem que refletir tudo isso, senão não é arte. O artista existe para isso. Você costuma se posicionar em relação ao voto? Sempre! Eu sempre votei no Lula, desde o meu primeiro voto. Nunca escondi isso de ninguém. Fiz campanha para ele, para a Dilma e para o Freixo. Isso porque são políticos que eu acredito, pessoas que devem estar lá para combater essa cambada de urubu, esses abutres que estão tomando conta do Brasil.

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Visibilidade feminina no Samba
Visibilidade feminina no Samba (Fernanda Garcia/Divulgação)

Você já tinha uma carreira importante na música, mas as lives te deram mais visibilidade. Como você percebe essa virada?
Aumentei o alcance das minhas redes sociais. Mas é claro que, quando falo isso, tenho noção do que eu sou e do que meu trabalho representa. Se tinha 98 mil e passei para 448 mil seguidores, foi porque essas pessoas se interessaram pelo meu trabalho. Ainda assim, tenho menos do que qualquer blogueiro. Para mim, isso é muito importante porque me ajuda a conquistar outros espaços. Hoje em dia, vemos artistas importantíssimos sendo preteridos porque têm pouco seguidores ou pouca vida virtual – o que acho um crime. Mas tento, na medida do possível, atingir o maior número de pessoas, porém, não moldo meu conteúdo para que isso aconteça.

“A arte existe para contestar, não somente para retratar. E se a arte fala de um momento, se está conversando com o tempo dela, como não vai falar de política? Como não vai falar de dominação, de misoginia, preconceito, injustiça, genocídio?”

A estrada das mulheres no samba nem sempre foi valorizada. Qual é a maior dificuldade que se enfrenta sendo uma mulher sambista?
A falta de oportunidade. Percebo que o dinheiro que é destinado ao sambista é um dinheiro que as pessoas dão com muita pena. Além disso, temos que lidar com preconceitos de um país que diz que é o país do samba, mas acha que ele não merece ganhar o tanto quanto pede. As dificuldades que tenho como sambista são as que a mulher, a mulher negra e que o sambista tem no Brasil. São várias dificuldades, várias situações ruins, muitos detalhes – mas a gente tem que caminhar. Eu não posso, em nenhum momento, desistir. Não posso me dar o luxo de dizer ‘eu desisto, não aguento’. Isso porque tenho casa para sustentar, família, filha, mãe. Então eu continuo, mas não há caminhos fáceis.

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O fato de ter dificuldade em conseguir um patrocínio tem a ver com o fato de você ser mulher e de você se posicionar sobre questões sociais? E além disso, você acha que há alguma alternativa para furar a bolha?
Acho que a alternativa para furar a bolha é a verdadeira discussão sobre o que é ser antirracista no Brasil. Porque eu só entendo o que acontece comigo quando vejo mulheres com o perfil próximo ao meu, passando pelas mesmas dificuldades que eu passo. E isso me entristece. Conheço poucas mulheres negras que têm patrocínio para fazer o que elas quiserem, por exemplo. Para entender o porquê isso acontece, vamos ter que andar muito para trás. Vamos ter que ver por que a mulher ganha menos que o homem no Brasil, porque a mulher preta entra sempre no final da fila em qualquer situação. Por que nosso trabalho, quando ele é visto por alguém, a impressão que dá é que estão fazendo um grande favor a gente. Essas são questões que a gente deixa de discutir por preguiça mas que fariam uma enorme diferença na vida das pessoas.

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Como você percebe essas discussões no governo Bolsonaro?
Posso dizer que o Brasil está a 120 km/h de ré. Há algumas semanas, um homem negro e vendedor de bala tomou um tiro de um guarda municipal que achou que seria assaltado. Um outro homem negro estava entrando no condomínio em que morava, e o vizinho, que morava no mesmo lugar, se assustou com a cor e deu três tiros, achando que era um ladrão. Isso é assustador! As pessoas não têm mais vergonha e qualquer desculpa cola, é cansativo. Claro que todas essas pessoas estão empoderadas por um monstro.

Se a gente tem na presidência do país um cara que tem ligação com a milícia, que está armando a população, que tem os filhos cometendo a maior atrocidade de crimes e não são investigados… Olha a quantidade de gente se declarando nazista nos últimos dias, essas pessoas estão fazendo isso porque perderam a vergonha, e estão fazendo isso porque estão sendo empoderadas pelo governo. Visibilidade feminina no SambaVocê reuniu uma banda formada exclusivamente por mulheres.

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Qual é a importância de proporcionar esse espaço?
Fico muito contente por colocar essas mulheres no palco me acompanhando. O samba nasceu das mãos de uma mulher chamada “Tia Ciata”, e a mulher foi perdendo o protagonismo no samba com o passar dos anos e das décadas. O samba cruzou um século inteiro se transformando em um gênero, às vezes, machista, colocando a mulher num lugar de coadjuvante. Então, acho muito importante colocar a mulher tocando samba, cavaquinho, pandeiro, percussão. É um lugar onde a gente merece estar e é um lugar que a gente não deveria ter aberto mão durante tanto tempo.

Hoje em dia, já tenho observado a quantidade de mulheres tocando samba, tocando instrumentos e  fazendo arranjos. Isso é um avanço, uma conquista! Acho que daqui para frente não tem como retroceder a isso. Assine Amazon Music O samba é muito sobre a reunião de pessoas, todo mundo junto aproveitando a música e curtindo o momento.

Na pandemia, as pessoas precisam se distanciar. Isso afetou, de alguma forma, a experiência?
A pandemia afetou as relações gerais. O samba, claro, vive de multidões e de encontros. Agora, a gente tem observado que os encontros voltaram a acontecer, muitos shows estão acontecendo, mas o samba continua neste lugar de ‘daqui a pouco é você’. As escolas de samba tiveram desfiles adiados por conta da pandemia, mas outros shows podem acontecer, grandes festivais, inclusive. Acho que isso quer dizer muito da relação que o Brasil tem com seu gênero principal.

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