Mulheres com deficiência vivem sob constante desapropriação de seus corpos e são impedidas de exercerem sua liberdade em relação ao sexo e à sexualidade
por Heloisa AunAtualizado em 2 ago 2021, 11h59 - Publicado em
1 ago 2021
23h31
uando Emanuelle Aguiar entrou na adolescência, presenciava suas colegas no momento do primeiro beijo ou primeiro relacionamento, mas com ela tudo acontecia de forma bem diferente. Ao se interessar por algum menino, não recebia qualquer retorno. Na época, seus sentimentos eram muito confusos, pois não sabia se o motivo da rejeição era “por ser feia”, “desinteressante” ou “por causa de sua deficiência”. “Foi a pior fase para mim. Isso é muito marcante e trouxe questões para minha vida adulta, hoje aos 28 anos”, relata a gestora de recursos humanos de Matinhos, litoral do Paraná, que nasceu com paralisia cerebral.
Sua autoestima e sexualidade se transformaram a partir dos 20 anos, ao começar a trabalhar em uma empresa de sua região. “Ali, eu me constituí enquanto pessoa e mulher, porque, até então, vivia somente dentro de casa com meus pais e irmãos”, afirma. Naquele período, se entendeu como uma mulher com deficiência, interessante, que atrai olhares, desejos e afeto dos homens. Contudo, Emanuelle ainda tinha certo bloqueio, decorrente dos traumas da infância e adolescência, e sempre achava que seria a última opção ou que o possível interesse não passava de uma “pegadinha”.
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Com sessões de terapia e o conhecimento sobre feminismo, a jovem percebeu que o que a impedia de relacionar-se era uma construção social que colocava as pessoas com deficiência como assexuadas e que precisam ter seus desejos privados para garantir o “cuidado”. “Precisei sair disso para me constituir, apesar de até hoje não me enxergarem como alguém que se relaciona afetivamente e sexualmente”, reflete. Atualmente, ela está terminando a graduação e licenciatura em geografia e faz uma pesquisa autobiográfica sobre a constituição da sexualidade da mulher com deficiência, a partir do conceito geográfico de lugar.
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A primeira relação sexual da paranaense aconteceu aos 21 anos com um rapaz que ficava frequentemente. Nesse relacionamento, o capacitismo em público ocorria a partir de comentários, como parabenizando-o por estar ao lado dela. “Dentro da nossa relação, essas situações capacitistas nem eram por maldade, mas estavam lá. Um exemplo é ele ter achado que eu não conseguiria fazer alguma posição no sexo por causa da minha deficiência. Porém, a gente conversava e resolvia essas questões”, conta.
Após o fim desse relacionamento, Emanuelle ficou solteira por dois anos, antes de conhecer seu ex-namorado, com quem permaneceu de 2018 a 2020. Nesse tempo sozinha, ela se permitiu conhecer o próprio corpo. “Eu me tocava muito e entendi os sinais que ele dava. Minhas amigas, ao me verem sem sair com ninguém, questionavam o motivo e eu respondia: ‘Vocês têm uma visão de sexualidade limitada, focada no outro, mas eu estou me conhecendo agora’”, lembra.
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As leituras sobre o assunto e práticas individuais fizeram a gestora de recursos humanos entender que o prazer era algo dela e não apenas de seu parceiro. Apropriar-se de quem era e de sua sexualidade ajudaram Emanuelle nesse processo em busca de sua autoestima. “Não vou falar que tudo ficou mais fácil, pois há fatores externos, como o fato de eu ser uma mulher com deficiência e ter vivido um relacionamento abusivo. Mesmo assim, hoje me sinto muito mais segura de quem eu sou, do que eu posso e até onde posso ir”, reitera.
“Dentro da nossa relação, essas situações capacitistas nem eram por maldade, mas estavam lá. Um exemplo é ele ter achado que eu não conseguiria fazer alguma posição no sexo por causa da minha deficiência”
Emanuelle Aguiar
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A descoberta de si: sexo e sexualidade
Os motivos que tornam a sexualidade um tabu para pessoas com deficiência é a desapropriação de seus corpos. Ao mesmo tempo em que há uma visão na sociedade de que as PCDs são assexuadas, em outros momentos elas acabam sendo hipersexualizadas, especialmente as mulheres, como se fossem um “fetiche”.
Emanuelle viveu isso na pele. Durante a adolescência, ninguém abordava esse tema no dia a dia e ela só conseguiu levar o assunto para a terapia na vida adulta. “Esse pensamento prejudica muito a saúde mental de todos e todas nós. Mas, quando comecei a ter o quadro de depressão, meu primeiro terapeuta sempre entrava nessas questões de relacionamento e sexo. A partir disso, levei o assunto para os outros terapeutas com quem tive contato posteriormente.”
Por causa dessas situações, hoje ela prefere se relacionar com pessoas com quem já tenha algum vínculo. No entanto, a transformação que sua sexualidade e autoconfiança trouxeram não tem dimensão. De acordo com a jovem, nesses anos, ela aprendeu principalmente sobre amor próprio. “Antes, eu via o sexo como algo sagrado, que seria só com uma pessoa muito especial, com quem irei me casar. Hoje, vi que sexo é prazer, leveza e felicidade.”
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Para Vanessa de Oliveira, 32, de Maceió, Alagoas, sua família foi quem mais a privou de viver a plenitude de seu corpo. Sem liberdade para se conhecer na infância e adolescência, ela permanecia dentro de uma “caixinha” por parte de sua mãe, ao mesmo tempo em que as amigas conversavam, tinham privacidade e saíam para passear. Era uma verdadeira sensação de isolamento social. “Às vezes, passava as férias todas dentro de casa. No período de estudos, era da casa para a escola e da escola para casa”, recorda. A liberdade e identificação consigo mesma vieram quando ela foi morar com a avó e, a partir daí, passou a ter vida social.
A primeira experiência afetiva de Vanessa se deu ainda na época em que morava no condomínio com a família, aos 12 anos, e tinha algumas amigas no local. “Todas as meninas falavam dos ‘paquerinhas’ e perguntavam: ‘e você, Vanessa?’. E eu nunca senti nada por nenhum menino”, recorda. Mas, até então, não tinha qualquer referência sobre sexualidade. Três anos depois, uma menina lésbica se mudou para uma casa vizinha e ela passou a identificar-se com o que falava. “Foi a primeira pessoa que eu fiquei. Então, tive um relacionamento mais sério, abusivo, e, em seguida, comecei a namorar minha atual esposa, Thafiny, com quem tenho 2 anos de casada e 8 de relacionamento”, conta.
A descoberta de sua sexualidade surgiu após ficar com a primeira menina, momento em que começou a perceber que tinha vontades e interesses, e passou a se olhar como mulher sexual. “Antes, eu achava que simplesmente era estranha e não gostava de ninguém.” Como PCD, teve que descobrir tudo sozinha, até porque há um tabu ainda maior entre as famílias para falar sobre sexo. O autoconhecimento foi o processo fundamental para entender-se como mulher lésbica e navegar pelo seu próprio corpo. “Quando a gente se conhece melhor e tem liberdade com nossa parceira, também nos aproximamos do nosso corpo e tudo evolui”, diz. “No passado, eu tinha vergonha de ficar pelada na frente da minha outra namorada se a gente não estivesse transando. Hoje, não quero mais esconder meu corpo.”
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“No passado, eu tinha vergonha de ficar pelada na frente da minha outra namorada se a gente não estivesse transando. Hoje não quero mais esconder meu corpo”
Vanessa de Oliveira
Beatriz Bebiano, 25, deu seu primeiro beijo aos 18, e não aos 14 nas matinês, como aconteceu com suas amigas mais próximas. Nascida e criada em Santo André, São Paulo, a tradutora e produtora de conteúdo relata que, para ela, não bastava gostar do coleguinha. Na época, não entendia o porquê, mas percebia que seus amigos se afastavam quando o assunto era ter qualquer envolvimento com ela. “Eu me questionava e ficava chateada, por isso, nessa fase entre infância e adolescência, era revoltada em relação a essas questões. Me perguntava: ‘Por que comigo? Por que eu tenho deficiência?’”, lembra. A jovem nasceu com Paraparesia Espástica Familiar Tipo 4, uma doença rara, genética e degenerativa, similar à paralisia cerebral.
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Sua condição afeta o movimento das pernas, portanto, ao andar, parece que alguém está segurando seu corpo. Há seis anos, quando passou a utilizar o andador, sua vida mudou em termos de independência e autonomia. A sexualidade, até então, era restrita a conversas de Beatriz com as amigas mais próximas, desencadeadas por sua curiosidade. Sua vida sexual começou, de fato, ao iniciar o relacionamento com seu atual namorado, em 2017, que ela conheceu em um grupo de Facebook. “O nosso namoro teve início em um terreno complicado, uma vez que eu estava operada após uma cirurgia ortopédica e ele soube lidar com a situação e as vontades. Foram seis meses de namoro na cama, sem nada, só um beijo e uma mão aqui, outra ali.”
A essa altura, Beatriz se via a cada dia mais curiosa para ter a primeira relação sexual com o namorado, além de estar “subindo pelas paredes”. “A gente planejou tudo: naquele dia, fomos encontrar nossos amigos, aí às 2h da manhã fomos para um motel. E aconteceu exatamente assim”, diz. Com o tempo de namoro, seu companheiro já entendia todo seu “modus operandi”, pois percebia os indícios, e um estava completamente apaixonado pelo outro. “Me senti tão à vontade que até dava risada”, recorda.
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Aquele dia representou um rompimento de alguns paradigmas na vida da tradutora. “Foi importante para me reconhecer como uma mulher que vai sentir prazer, sim e muito!”. Também a ajudou em uma insegurança que carrega desde sempre: a consciência de que consegue proporcionar prazer a outra pessoa. “Esse ponto me causou uma explosão cerebral. É de muito descobrimento para uma mulher com deficiência entender isso.” E tal fato se deu além da relação “a dois”, uma vez que teve impacto em sua autoestima e autoconfiança. “Eu me perguntava: ‘como será que sou?’ Eu nunca tinha pegado um espelho e visto minha vulva — e isso é mais um ponto para a mulher com deficiência: como ela vai conseguir se ver direito?”.
O início da vida sexual virou uma chavinha em seu cérebro: como consequência da autoestima, ocorreram mudanças físicas. “A postura mudou, minha aparência se transformou… Foi um botão que apertei para me descobrir enquanto mulher. A vida sexual importa zero para você ser considerada menina ou mulher, mas para mim significou algo transformador”, afirma Beatriz. No decorrer dos anos, a relação íntima com seu namorado passou por evoluções, principalmente no que diz respeito ao conforto e segurança, e permanece em constante construção.
A falta de representatividade de mulheres com deficiência quando o assunto é sexo e sexualidade fez com que a jovem se envolvesse com o assunto para tentar ajudar outras pessoas. Durante a pandemia, participou de uma live com uma psicóloga e sexóloga e abordou essa questão. “Na conversa, disse a ela: ‘não me vejo em nenhum lugar’”, pontua. Foi então que a terapeuta a convidou para participar de um projeto e montar um e-book focado na mulher com deficiência física. O grupo à frente da iniciativa reúne duas psicólogas e sexólogas, terapeuta tântrica, ginecologista e uma empresária que tem uma marca de produtos eróticos focados nesse público. “Estamos fazendo entrevistas com outras mulheres que têm deficiência física para captar suas experiências e questionamentos”, conclui.
“A gente planejou tudo: naquele dia, fomos encontrar nossos amigos, aí às 2h da manhã fomos para um motel. E aconteceu exatamente assim”
Beatriz Bebiano
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Amor pelo próprio corpo
Apesar de ter tido sua primeira relação sexual aos 21 anos, a estudante de psicologia e criadora de conteúdo Julia Aquino era estimulada desde a infância a entender sobre sua sexualidade. Por volta dos 14 anos, se descobriu lésbica e contou para sua mãe, que sempre conversou com a filha sobre o assunto. “Lembro que, aos 9 anos, ela perguntou se eu sabia o que era sexo. E ainda falava sempre para mim: ‘Quando você tiver idade, pode fazer sexo à vontade, pois ter prazer é muito bom, mas tem que ter noção das consequências, como as doenças’”, lembra. Sua mãe morreu há três anos e, desde então, Julia vive sozinha no Rio de Janeiro.
A “sementinha” plantada em sua cabeça atiçou a curiosidade da jovem, que usava a internet para entender mais antes de praticar. “Lembro que vi no Twitter, ainda bem novinha e sem ter beijado na boca, a palavra squirt [orgasmo ejaculatório], e fui pesquisar a respeito”, conta. Quando estava no Ensino Médio, uma de suas professoras também introduziu a discussão. “Ela disse: ‘Julia, você é cadeirante, mas saiba que pode ter prazer com os outros e consigo mesma, seja com seus dedos, vibradores ou outros brinquedos’”, relata. A estudante começou a estimular seu corpo bem cedo, embora tenha utilizado um vibrador apenas mais tarde, após seu primeiro relacionamento.
Como mulher com deficiência e negra, a jovem demorou algum tempo desde que assumiu sua sexualidade para passar pelo processo de autoestima e autoafirmação. “Eu não me sentia desejada e nem sentia que as meninas se atraíam por mim, além de que não tinha experiência nenhuma. Isso fazia com que as pessoas apagassem minha sexualidade”, pontua. Na época, chegou a ouvir de algumas pessoas que ela só se considerava lésbica por causa de sua deficiência, o que confundia sua cabeça e a machucava profundamente. “Até questionei minha sexualidade: ‘será que sou hétero ou bi?’, ‘será que gosto mesmo de garotas?’, ‘será que não uso isso como forma de carência por achar que ninguém vai me querer?’”, descreve. Consequentemente, Julia só se aceitou por volta dos 16 anos.
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As relações ocorreram aos poucos em meio a essas descobertas. Aos 14 anos, teve um primeiro relacionamento à distância, que começou por meio de um perfil fake no Orkut. As mães das duas meninas sabiam, porém, o encontro e a troca de afeto nunca aconteceram pessoalmente. Seu primeiro beijo foi aos 18 anos, com uma “ficante”. “Ela já era mais experiente e eu entrei de forma intensa, depositando muitas coisas nela, que era um ‘rolo’ somente. Me apaixonei e tinha dificuldade em entender que aquilo que estava sentindo era, na verdade, por eu ter colocado minha carência e traumas em alguém.” Foi então que Julia passou a trabalhar mais sua autoestima e amor-próprio.
Meses depois do falecimento de sua mãe, a criadora de conteúdo conheceu uma pessoa, que veio a se tornar sua namorada. Com ela, teve a primeira relação sexual. O momento foi natural para ambas as partes. “Até então, era muito difícil para mim por não ter um corpo padrão. Eu não fui ensinada pela sociedade a aceitá-lo do jeito que ele é”, afirma Julia, ressaltando que até hoje tem suas inseguranças.
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Segundo ela, sua mãe sempre lutou para que Julia tivesse a independência que conquistou hoje. E isso se refletiu em seu primeiro sexo “a duas”. “A gente conversou, falei sobre as limitações e inseguranças que tenho com meu corpo, e foi uma boa troca. Isso fez diferença para me sentir mais segura”, acrescenta. Mais do que isso, sua então namorada a tratou como qualquer outra mulher, sem distinção por ela ter uma deficiência. “Eu senti: sou mulher de verdade e posso proporcionar prazer para alguém. Posso ser boa, sim.” Perder a virgindade transformou a vida de Julia, principalmente com os traumas pelos quais tinha passado. “Consigo, agora, me entender enquanto mulher. Consigo entender que o mais importante é estar bem resolvida comigo mesma, me aceitar, gostar de mim e ter amor pelo meu corpo”, finaliza.
“Depois que transei pela primeira vez, consegui me entender enquanto mulher. Consigo entender que o mais importante é estar bem resolvida comigo mesma, me aceitar, gostar de mim e ter amor pelo meu corpo”
Julia Aquino
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‘Como você transa?’
São tantas barreiras sociais que, muitas vezes, PCDs não conseguem sair de casa para conhecer pessoas novas, como revela Vanessa. “Família, amigos, colegas… O capacitismo está em todos os lugares. Eu tenho conhecidos que até hoje duvidam que eu tenha relações sexuais com minha esposa.” Apesar de já ter sofrido lesbofobia ao demonstrar afeto com sua mulher, a designer mostra que o preconceito contra PCDs é mais recorrente, pois é visível e recorrente. “Se saímos na rua juntas, muitas pessoas dizem: ‘Deus abençoe’ ou ‘Você é irmã ou cuidadora dela?’’”, reflete.
Os exemplos de frases capacitistas dariam uma lista interminável, como mostra Julia. “‘Nossa, tão bonita e na cadeira de rodas?’ é a mais comum. Eu enfrento o capacitismo a partir do momento em que saio da minha casa e me proponho ir a qualquer lugar”, mostra ela, que ainda vive o racismo diariamente. No entanto, antes de olhar para sua cor, as pessoas focam em observar sua cadeira de rodas.
Como mostram as entrevistadas, o capacitismo circunda todas as esferas de suas vidas de diferentes formas. Alguns exemplos são a infantilização e a negação da sexualidade da mulher com deficiência. “É a cultura do cuidado. Se a pessoa com deficiência demanda cuidado, nada além poderá ser falado sobre ela”, reflete Emanuelle Aguiar.
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Vanessa lembra que, na primeira vez que foi a uma ginecologista, a profissional só se dirigia a sua mãe ao falar algo, como se ela não existisse ou fosse uma criança. A consulta começou de um jeito tão ruim que só queria sair daquela sala. Agora, depois de muitas situações de capacitismo, a jovem encontrou uma médica com quem se sente bem para falar sobre assuntos pessoais e todo o preconceito que sofre em outras esferas.
Assim como Vanessa, Julia revela que a ida ao ginecologista sempre foi algo problemático em sua existência. Aos 23 anos, não conseguiu estabelecer uma rotina anual de consultas e exames, pois o preconceito é muito forte. Sempre que tenta ir ao SUS e aciona a clínica da família, dizem que ela precisaria passar por um ginecologista, mas não há qualquer assistência para apoiá-la. “Eu sinto essa negligência. Por isso, vou procurar ajuda em um consultório particular”, acrescenta.
“‘Nossa, tão bonita e na cadeira de rodas?’ é a mais comum. Eu enfrento o capacitismo a partir do momento em que saio da minha casa e me proponho ir a qualquer lugar”
Julia Aquino
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E o constrangimento nessas ocasiões não parou por aí. Segundo Emanuelle, após ter sua primeira relação sexual, ela procurou um determinado profissional de sua cidade e contou a novidade. “Tá, mas o que você quer?”, respondeu o médico, que nem a examinou. “Eu retruquei: um anticoncepcional ou saber o que tenho que usar”, pontua. Passado algum tempo, a jovem teve uma infecção, consultou o mesmo ginecologista e não recebeu qualquer apoio. Foi aí que buscou outro especialista. “Quando falei que tenho ansiedade e depressão, ele surtou e afirmou que eu não poderia tomar um hormônio tão forte por causa de outros medicamentos.” Hoje, a gestora de recursos humanos usa a injeção anticoncepcional a cada três meses. “Meu atual médico sempre me examinou e mostrou que era possível, sim, fazer os exames mesmo com meus espasmos.”
Para além dos comentários ofensivos no ginecologista, a jovem viveu situações de sexualização e fetichização por parte de alguns homens. Em uma conversa de aplicativo de relacionamento, um rapaz deu match com ela e disse: “Tenho curiosidade de transar com uma mulher com deficiência”. Emanuelle, então, rebateu: “Se depender de mim, você vai continuar curioso”.
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Outro momento para lá de agressivo aconteceu em seu primeiro emprego. Devido a seus espasmos, um rapaz dirigiu-se a outro colega da paranaense e disse: “Eu tenho a maior curiosidade de transar com a Manu”. Em seguida, o amigo de Emanuelle questionou: “Mas por quê?”. “O cara respondeu: ‘Por causa dos espasmos, deve ser uma sensação de um vibrador natural’”, narra a gestora, que ficou perplexa naquele momento.
“Como você transa?” é uma pergunta que a estudante de psicologia Julia já ouviu em situações de preconceito. O capacitismo a impediu de se aproximar das pessoas que gostaria de beijar, como em festas. “Da mesma forma, ninguém nunca chegou em mim nesses lugares, pois deduzem que não terei relacionamento com ninguém ao me verem na cadeira de rodas”, conta ela, que se tornou completamente retraída durante a adolescência por ser muito silenciada e apagada. “Hoje, ao saber mais sobre autoconhecimento, me imponho mais nas relações.” Tais dificuldades foram amenizadas quando Julia criou um perfil Tinder. “No aplicativo, não tem essa função de levar um fora e a pessoa sair correndo.”
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Já Beatriz tentou usar o Tinder em 2014, antes mesmo de ter sua primeira relação sexual. Ao entrar no aplicativo, deixou apenas fotos de rosto disponíveis, que não mostravam sua deficiência. Algum tempo depois, colocou uma foto na cadeira de rodas, que usa de vez em quando. Com a mudança, a diferença foi gritante, tanto na quantidade de matchs que conseguia, como no surgimento da típica pergunta: “O que você tem? Foi acidente?”.
Em uma época em que não se falava em capacitismo, a tradutora sentia na pele o que era esse tipo de preconceito. “Teve um rapaz que eu estava conversando sem mencionar minha deficiência, até ele me chamar para sair. Eu respondi: ‘se você me encontrar de cadeira de rodas, não estranhe, eu sou PCD’”, relata. A hora que escreveu isso, ele respondeu: “Ah, então deixa para lá!”. “Eu fiquei bem sentida… Após alguns meses, ele veio me chamar no WhatsApp para sair, mas eu respondi: ‘Então minha deficiência não é mais um problema para você?’”.
Nas outras ocasiões, Beatriz reagiu de diferentes maneiras, a depender da pessoa. “Não sei quantas vezes alguém virou para mim e disse: ‘Ai, coitada, é tão linda.’ Oxe, por quê? A beleza e a deficiência não podem existir ao mesmo tempo?”, conclui.
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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Paloma Santos. Confira mais de seu trabalho aqui.