
o seriado For Life, a vida do advogado Isaac Wright Jr. é retratada como uma história emocionante de superação. Condenado de forma duvidosa, ele passou anos na cadeia estudando as leis para defender os colegas e a si próprio, até conseguir marcar uma audiência e anular suas condenações. Durante uma entrevista, Isaac afirma que canalizou toda emoção negativa e auto-destrutiva proporcionada pela situação em energia para estudar e conseguir sair dali. Assim como o ex-prisioneiro norte-americano, o carioca Erivelto Melchiades merece ter a vida retratada em uma série, cujo cenário dos presídios brasileiros dá contornos pesados em contraponto à versão estrangeira.
Integrante da frente pelo desencarceramento do Rio de Janeiro e diretor da Rede Reforma, uma associação de advogados que atuam pela reforma da política de drogas do Brasil, o bacharel em Direito enfrentou todas as estatísticas quando transformou a dor sentida durante o cárcere em força para mudar a realidade em que vivia. Cria do Morro do Cantagalo, ele começou a trabalhar desde criança ao cuidar de carros na rua e auxiliar barraqueiras de praia. Quando atingiu a maioridade, a pressão social por um trabalho fixo aumentou. A vontade do jovem era de focar nos estudos, mas, sem condições, ele seguiu atrás do sonhado emprego com carteira assinada. Não teve sucesso.
“A minha permanência no tráfico foi muito curta, porque logo depois de seis meses fui preso no crime de porte ilegal de armas. Eu tinha menos de 21 anos, fiquei preso 21 dias na antiga Polinter da Praça Mauá. Era extremamente horrível aquele lugar, era pior que o inferno. Tinha capacidade para 17 pessoas, mas tinha 122”
“Sabe como é a mente do jovem, principalmente da comunidade. Esperei, mas bate aquele desespero. Você tem que ter grana, afinal, você quer sair, ter roupa, levar a namorada para comer em algum lugar. Então, comecei a me envolver com coisas erradas, me envolvi com o tráfico de drogas. A minha permanência no tráfico foi muito curta, porque logo depois de seis meses fui preso no crime de porte ilegal de armas. Eu tinha menos de 21 anos, fiquei preso 21 dias na antiga Polinter da Praça Mauá. Era extremamente horrível aquele lugar, era pior que o inferno. Tinha capacidade para 17 pessoas, mas tinha 122”, ele conta. “Quando cheguei naquele lugar, prometi para mim mesmo que não queria saber da vida do crime, essa realidade não pertence a mim. Decidi de fato dar um fim nisso quando saísse dali, procuraria um emprego formal, não faria mais coisas erradas. Dei continuidade na minha vida, saí da Polinter e respondi em liberdade. Posteriormente, o crime foi dado como extinto, eu voltei a estudar, mostrei que estava fora do universo criminal”.
Mas a história de Erivelto ainda tinha um árduo capítulo a percorrer. Depois de atravessar os portões da prisão, ele conseguiu o almejado emprego de carteira assinada, voltou ao Ensino Médio, casou-se e teve um filho. Mas um desentendimento com a esposa, que ameaçava fugir com a criança, resultou em uma ameaça enigmática. Ela disse que acabaria com a vida dele.
“Fiquei surpreso ao receber um chamado para ir à delegacia para prestar esclarecimento a respeito do caso dela, em 2010. Fui com as minhas próprias pernas até a delegacia para esclarecer o caso, porque não tinha feito nada, tinha certeza disso. Quando chego lá, tinha um inquérito policial em aberto contra mim do mesmo ano em que fui preso pelo porte ilegal de armas, na tentativa de latrocínio. Eu nunca tinha roubado alguém, nunca tinha dado tiro em cima de ninguém, e o crime pelo qual me acusaram foi sem nenhum tipo de materialidade, somente se fazendo valer o testemunho de uma pessoa que disse ter presenciado um assalto.” Detalhe: a testemunha estava na entrada do seu prédio em Ipanema, quando viu duas pessoas em cima de uma bicicleta.
A história parece bizarra, mas não tão incomum se formos pensar na realidade penal brasileira: “O crime não tinha materialidade porque não tinha vítima, matéria, o roubo não existia. Era apenas o testemunho de uma pessoa que disse ter acontecido o fato. Essa pessoa foi até a delegacia, apresentaram para ela um álbum cheio de fotografias no qual tinha uma foto minha. Aquele cara disse que era eu por causa de um reconhecimento por foto na delegacia, no mesmo ano em que fui preso. Só que isso rolou depois de cinco anos. Ele foi chamado para lá, eu fui para a delegacia, rodei, fui para o sistema penitenciário, e rolou a audiência. O tempo todo a juíza perguntava para esse cara que me acusava se fui eu, ele sempre falava que ele não se lembrava, porque tinha passado muito tempo do fato, mas se ele foi à delegacia e reconheceu, era eu mesmo. Só tinha testemunho dele e o meu, mas naquele momento que ele me viu, o cara ficou na dúvida.”
“O tempo todo a juíza perguntava para esse cara que me acusava se fui eu, ele sempre falava que ele não se lembrava, porque tinha passado muito tempo do fato, mas se ele foi à delegacia e reconheceu, era eu mesmo. Só tinha testemunho dele e o meu, mas naquele momento que ele me viu, o cara ficou na dúvida”

Erivelto diz o óbvio, mas que não é tão óbvio quando sua pele é preta, e seu lugar de origem é a quebrada: “Se tinha dúvidas, o princípio dentro do Direito diz que se absolve o réu. O cara tinha dúvidas, a juíza questionava: ‘Mas vamos dizer que foi ele?’, ou ‘Você tem certeza ou não?’, e ainda ‘Você não falou que foi ele na delegacia?’. Tudo era surreal. Não tinha matéria que comprovasse o crime.”
Para o ativista, sua condenação se deu por conveniência: “A juíza quis aplicar a questão da reincidência do outro crime que já tinha sido extinto. No caso, eu fui preso no inquérito pelo qual fui julgado duas vezes, por uma mesma situação. Quando cheguei à penitenciária, aconteceram várias coisas, minha ex sumiu com o meu filho, não tenho contato com ele, está com 11 anos, ela reside em São Paulo. Eu já viajei diversas vezes para São Paulo fazer busca, ela foge, nunca tenho notícias de onde eles estão.”
“Se tinha dúvidas, o princípio dentro do Direito diz que se absolve o réu. O cara tinha dúvidas, a juíza questionava: ‘Mas vamos dizer que foi ele?’, ou ‘Você tem certeza ou não?’, e ainda ‘Você não falou que foi ele na delegacia?’. Tudo era surreal. Não tinha matéria que comprovasse o crime”
A pena para o reincidente foi maior do que os 21 dias que enfrentou quando ainda era réu primário: “Fiquei um ano preso por esse crime, passei pelo sistema todinho em Bangu. Tem preso chefe de boca, um monte de gente, é a escola do crime mesmo. Ali, eu tinha todas as oportunidades para sair depois com a revolta total do Estado e fazer de fato o que eles queriam que eu fizesse, que é segurar fuzil, trocar tiro com eles, continuar na criminalidade. Mas eu tinha uma certeza que não queria a vida do crime. Toda vez que eu colocava as mãos na grade, olhava o lado de fora. Eu via os pássaros soltos e eu ali preso e sem saber o motivo. Prometi para mim mesmo que, quando eu saísse dali, ia fazer algo diferente e mudaria não somente a minha história, mas também incentivaria outras pessoas a mostrar que existia um outro caminho.”
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Erivelto diz que não sabe como, mas adquiriu uma grande força dentro de si naquele período. Saiu da detenção em 2011, no ano seguinte voltou mais uma vez para o Ensino Médio e em 2013 concluiu a escola. Ingressou na faculdade de Direito através do FIES. “Queria muito ser advogado, mas estava cheio de dúvidas. Será que vou passar? Fui com medo, escondi meu passado de todo mundo na faculdade, ninguém sabia que eu era egresso do sistema penitenciário, nem nada sobre a minha vida. Procurei esconder tudo isso”, diz. “Em 2015, eu estava trabalhando, mas decidi que queria fazer estágio. Fui para um escritório ver se me contratavam, mas ninguém me chamava para nada, não davam oportunidade. Deve ser por causa do meu passado e também devido ao fato de eu morar em comunidade, existe o estereótipo, você sabe como é”.
Manter uma vida de estudante enquanto escondia o passado foi se tornando cada vez mais insustentável. Corajoso, ele seguia adiante com a promessa de trabalhar por justiça fora das grades. Uma associação de moradores do Cantagalo se tornou escola para o aspirante a advogado, na qual começou a prestar assistência em diversos campos jurídicos, do Cível ao Criminal. Um colega advogado assinava as petições para Erivelto, fazia as audiências e dava toda assistência. No sétimo período da faculdade, ele conseguiu a carteira de estagiário ao omitir seu histórico para a OAB, uma atitude considerada muito grave. Mas era a única saída para ele seguir na profissão almejada com tantos sacrifícios.

Porém, determinadas circunstâncias entrelaçaram o destino de Erivelto, como uma espécie de sinal positivo do universo. Durante o atendimento a um vendedor de mate da comunidade, preso na orla de Ipanema após ser pego em flagrante vendendo maconha, ele fez uma amizade muito especial no fórum.
“Estávamos na sala de espera ao lado de uma série de advogados da Lava-Jato, os caras contando mil vantagens, que era pica, que faziam acontecer mesmo no direito. Um advogado se levantou, deu uma de doido, não me conhecia, mas falou para mim: ‘Advogado mesmo é o Erivelto, porque tenho quase certeza que ele está aqui pegando um caso de um cara caído, que deve ter parcelado em várias vezes para pagar os honorários. Mas ele está aqui de todo coração e vocês querendo contar vantagem ganhando dinheiro roubado de desvio’. Ele disse isso sem me conhecer. Cheguei nele de canto: ‘Porra, como você sabe?’. Ele disse: ‘Dá para ver no teu estilo’. Ele falou sobre a Rede Reforma, me deu cartão, deixei passar. Mas quando é para ser, não tem jeito”
“Em 2015, eu estava trabalhando, mas decidi que queria fazer estágio. Fui para um escritório ver se me contratavam, mas ninguém me chamava para nada, não davam oportunidade. Deve ser por causa do meu passado e também devido ao fato de eu morar em comunidade, existe o estereótipo”
Apesar de toda discrição, denúncias contra Erivelto foram parar na OAB graças aos advogados da comunidade, que tinham medo de perder clientela. Disseram que ele estava exercendo a profissão de forma ilegal. Este foi mais um soco no estômago encarado de frente pelo estudante de direito. “A OAB decidiu encaminhar para o Ministério Público, e então caiu delegacia novamente em cima de mim. Porém, não existiu nenhum tipo de ilegalidade, pois eu atuava em conjunto com advogados. Se eu estivesse sozinho, poderia configurar como exercício ilegal da profissão. Naquela época, a polícia me chamou, eu estava com carteira de estagiário e decidiram arquivar o caso. Mesmo assim, fui julgado pelo conselho pleno da OAB porque não tinha falado que era egresso do sistema prisional. Disseram que menti e tal, fui a julgamento na OAB, os caras queriam cassar minha carteira para eu nunca mais entrar como advogado. De novo a mesma situação, fiquei no banco dos réus pela terceira vez. ‘Agora é para acabar mesmo com a minha vida, estão chegando perto disso’, eu pensava. Um conselheiro pediu voz, levantou e falou: ‘O rapaz é estagiário, ele passou no sistema, ele se omitiu porque teve um bom motivo para fazer. É uma questão de orgulho ver um rapaz que saiu do sistema penitenciário, estudou, está chegando onde ele chegou e a OAB quer cassar o cara para ele não virar advogado’.”
O ativista conta que o conselheiros em questão era um senhor de idade, e em seu discurso de defesa afirmou que não concordava com a atitude, que se a OAB caçasse a carteira de Erivelto, ele daria a advocacia como causa perdida. “Ele disse que a OAB precisa de advogados como eu, que nem ele teria coragem de fazer o mesmo. Descreveu meu ato como muito corajoso, mas disse que eu deveria ter contado a verdade. Porém, a situação era louvável da mesma forma. Eu ganhei no conselho por cinco votos a dois. Renovaram minha carteira por mais um ano e limparam toda barra, disseram também que era necessário a revisão criminal para entrar como advogado. Já consegui do primeiro caso, agora, só falta uma”.