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Saúde mental também é (ou deveria ser) coisa de homem

Na primeira reportagem do nosso Especial Masculinidades, mostramos como suicídio e outros fenômenos que afetam mais os homens têm suas raízes no machismo

por Ismael dos Anjos Atualizado em 15 abr 2021, 15h35 - Publicado em 9 out 2020 10h04

Saúde mental também é (ou deveria ser) coisa de homemA conversa sobre masculinidades exige cuidados. E se vamos falar sobre saúde mental e bem-estar dos homens, o primeiro desses é não invisibilizar ou subalternizar as pessoas que mais sofrem com os comportamentos nocivos atrelados a esses sujeitos: as mulheres.

Em 2015, o  Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) constatou que o Brasil era o 5° país do mundo com maior índice de feminicídios e que, a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada em nosso território. Cinco anos se passaram e os números continuam substancialmente os mesmos. A cada 2 horas, uma mulher morre vítima de violência no país. Também somos o país que mais comete violência contra pessoas LGBTQIA+ no mundo — a cada 26 horas, é assassinada ou se suicida uma pessoa desse grupo não normativo, vítima da LGBTfobia, de acordo com o Mapa dos assassinatos de travestis e transexuais no Brasil, divulgado em 2017. 

O segundo ponto de atenção é saber de quem estamos falando quando falamos do homem, no singular. A máxima que resume o masculino como gênero no poder não dá conta de explicar (ou faz questão de ignorar) a existência de homens trans e homens negros, por exemplo. A expectativa de vida de um transexual no Brasil é de apenas 35 anos. E se informações como homens morrem entre três a quatro vezes mais de suícidio, têm menor escolaridade e são a maior parte das vítimas de homicídio têm se notabilizado nas discussões sobre gênero, é preciso evidenciar que, no Brasil, os extremos têm raça. Enquanto os brancos povoam a maior parte dos indicadores positivos, negros ocupam as prisões e cemitérios.

“Existe um padrão hegemônico de masculinidade, de categorias de exclusão que determina atributos que um homem deve ter, como por exemplo, ser branco, heterossexual, cisgênero, forte, viril, sempre disposto ao sexo, que não expressa seus sentimentos, provedor, etc”

Fabio Sousa

“Essas relações de superioridade e poder também atravessam os homens. Existe um padrão hegemônico de masculinidade, que é estereotipado e traz características e comportamentos tidos como masculinos que devem ser performados pelos homens. É um padrão de categorias de exclusão que determina atributos que um homem deve ter para ser lido como homem na nossa sociedade, como por exemplo, ser branco, heterossexual, cisgênero, de classe social privilegiada, alto nível de instrução, forte, viril, sempre disposto ao sexo, que não expressa seus sentimentos, resolve todos os seus problemas sozinho, casado e com filhos, provedor de seu lar, etc”, enumera Fabio Sousa, terapeuta junguiano especialista em psicologia analítica e criador do coletivo Ressignificando Masculinidades. “Todas as outras formas de ser homem que não atendam a esse padrão são tidas como formas inferiores, menos homem”. 

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(Fabrizio Lenci/Ilustração)

“Todas as outras formas de ser homem que não atendam ao padrão são tidas como formas inferiores, menos homem”

Fabio Sousa

A sensação de superioridade ou a necessidade de confirmar o pertencimento ao padrão hegemônico podem servir de combustível para que preconceitos, discriminações e violências persistam em um círculo vicioso de validação entre os pares. É o caso de parte dos assédios, por exemplo. Quando um homem assobia para uma mulher na rua, para além da certeza de impunidade, ele não vislumbra um sim da vítima. Ele espera que o colega ao lado pense “esse é macho mesmo, não deixa passar uma!”.

Dessa forma, para enfrentar números como os citados aqui, não adianta examinar apenas os efeitos do que convencionou-se idealizar como masculino. É preciso entender como esses comportamentos se constróem e são naturalizados, geração após geração, e agir para que não tenham mais lugar. A questão das masculinidades pode não ser a maior emergência que temos a enfrentar como sociedade, mas, certamente, estrutura e se faz presente em vários dos problemas urgentes que precisamos endereçar.

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(Fabrizio Lenci/Ilustração)

Aprender a sentir

Quando coordenei o projeto O Silêncio dos Homens – pesquisa e documentário de 2019 idealizado pelo PapodeHomem com apoio institucional da ONU Mulheres – um dos temas que concentrou nossas investigações foi, como o título do projeto entrega, a restrição emocional. Embora o machismo seja constituído sob a crença de que homens são superiores às mulheres e pessoas não binárias, ele têm efeitos colaterais sobre os próprios homens. 

Um dos principais achados da pesquisa que ouviu mais de 40 mil pessoas em todos os estados do Brasil é que, embora 6 a cada 10 homens admitam enfrentar algum distúrbio emocional, apenas 1 a cada 10 frequenta um terapeuta. O dado é atualizado, mas o problema é secular. 

“A restrição emocional é constituída entre os homens a partir dos processos de socialização dos gêneros. O patriarcado é uma dicotomia e, como toda a dicotomia, apresenta sérios problemas de estabilidade porque são totalitárias. Bem, mal. Homem, mulher. Sim, não. As dicotomias obrigam as pessoas a escolher um lado, esvaziando-as da capacidade de se apropriar do outro. Como isso afeta os homens? Quando você abre mão daquilo que o outro ‘lado’ oferece ou se caracteriza por, sua vida é incompleta. Ou você é forte ou você é sensível. Ou você é competitivo ou você é cooperativo. Os meninos vão construir a masculinidade a partir de não ser mulher”, diz Leonardo Piamonte, psicólogo e criador da página Psicologia da paternidade. “O homem se encarrega ativamente de soterrar, através da criação de uma masculinidade universalmente aceita, os valores considerados femininos, que são essencialmente valores humanos. Logo, a sua humanidade fica incompleta”. 

Fonte: pesquisa “O silêncio dos homens”, do PapodeHomem/Instituto PdH. 40.000 respondentes de todo o Brasil, em 2019
Fonte: pesquisa “O silêncio dos homens”, do PapodeHomem/Instituto PdH. 40.000 respondentes de todo o Brasil, em 2019 (Fabrizio Lenci/Ilustração)
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“O homem se encarrega ativamente de soterrar, através da criação de uma masculinidade universalmente aceita, os valores considerados femininos, que são essencialmente valores humanos. Logo, a sua humanidade fica incompleta”

Leonardo Piamonte

Enquanto parte das expressões emocionais de vulnerabilidade e empatia são restritas — do tradicional “homem não chora” à falta de repertório saudável para as demonstrações de amor e carinho —, algumas poucas são estimuladas. É socialmente aceitável que raiva ou agressividade sejam respostas legítimas para os homens em momentos tão variados quanto situações de angústia, frustração, tristeza, ansiedade ou medo. Divulgado em março deste ano, o Gender Social Norm Index, estudo realizado em 75 países incluindo o Brasil, aponta que 28% das pessoas ainda acredita que é justificável um homem bater na companheira.

As dores que os homens causam estão intrinsecamente relacionadas às dores que eles sentem. Não por acaso, umas das ferramentas bem sucedidas no combate à violência contra as mulheres no Brasil são os grupos reflexivos que colocam homens autores de violência para conversarem periodicamente com psicólogos e outros profissionais. Prevista pela Lei Maria da Penha nacionalmente e colocada em prática por projetos como o Tempo de Despertar, em São Paulo, essa pena alternativa mitiga a reincidência dos crimes. Na experiência paulista comandada pela promotora Gabriela Manssur, os índices saíram dos 65% e chegam a até 2%.

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“Os homens têm muita dificuldade de lidar com a saúde mental porque é muito difícil para um homem se colocar nesse lugar de vulnerabilidade e pedir ajuda. A saúde física não diz respeito à nossa personalidade. Eu posso ter alguma algum tipo de doença, como hipertensão, e nem por isso me considero errado. A saúde mental traz uma carga de sofrimento diferente, de não conseguir sair da cama ou não ter motivação suficiente para viver. Fala dessa parte do que somos nós”, aponta Piamonte. “São muitos os elementos que compõem o suicídio, mas os números apontam que ele afeta mais os homens porque a resposta perante o fracasso, a resposta perante a dor, depende muito da carga emocional, do treinamento emocional que a gente tem. E o treinamento emocional no homem é bem rudimentar”.

“Um ponto bastante relevante nisso é a psicofobia, que é o preconceito e/ou discriminação contra as pessoas que apresentam transtornos e/ou deficiências mentais” explica Sousa. “Criou-se uma ideia equivocada de que quem se consulta com profissionais como psiquiatras, psicólogos, psicoterapeutas são pessoas ‘malucas’. Pensando especificamente nos homens, comportamentos como o autocuidado e cuidado da saúde são colocados como coisas de mulher e também conflita com a ideia de que homens não podem pedir ajuda e devem resolver seus problemas sozinhos. No campo emocional, pode existir a dificuldade de reconhecer, identificar, nomear e lidar com seus sentimentos, o que afasta ainda mais os homens desses profissionais”. 

“A saúde física não diz respeito à nossa personalidade. Eu posso ter alguma algum tipo de doença, como hipertensão, e nem por isso me considero errado. A saúde mental traz uma carga de sofrimento diferente, fala dessa parte do que somos nós”

Leonardo Piamonte
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(Fabrizio Lenci/Ilustração)

Hora de crescer

Para explicar esse desenvolvimento parcial do campo emocional entre os homens, Piamonte cunhou o que chama de quinta série mental. “É um processo de cristalização. As criança evoluem, tanto meninos quanto meninas, até certa idade. De repente, parece que a mulher continua evoluindo, tentando ganhar mais auto responsabilidade, mais autocuidado, mais autoconhecimento, e o homem para no que chamei uma vez de quinta série mental. Se um homem ganhar seu dinheiro, mantiver sua família e tiver algumas empreitadas de sucesso ao longo da vida, tudo bem se ele não mantém as regras básicas de higiene. Tudo bem se ele caçoa de coisas sensíveis para os outros, como faria uma criança da quinta série. Tudo bem se ele não consegue ter uma restrição até de ações como dirigir o carro rapidamente, beber até cair. Esse tipo de irresponsabilidades são muito bem toleradas no homem”.

Para romper com esse acesso permanente aos comportamentos infantilizados, o primeiro passo que um homem adulto pode dar rumo ao amadurecimento é romper com esse silêncio que limita, mas também serve de cúmplice. De acordo com a pesquisa de O Silêncio dos Homens, apenas 3 a cada 10 têm o hábito de falar sobre anseios, medos e sentimentos profundos mesmo entre os melhores amigos. Para além da terapia individual, os grupos de homens como o Memoh e o próprio Ressignificando Masculinidades têm surgido como opção para esses enfrentamentos.

“Para que os grupos de homens se comprometam com essa transformação de comportamento, é importante considerar todos os atravessamentos sofridos pelo entendimento do que é ser homem e masculinidade, contemplando as questões de raça, orientação sexual, identidade de gênero, sexualidade, classe, geografia, gênero, machismo, patriarcado, homofobia, misoginia e o que mais emergir nesses encontros”, explica Sousa. “Os grupos de homens podem ser lugar de acolhimento e escuta afetiva, com homens compartilhando experiências e vivências pessoais, construindo juntos novos caminhos, possibilidades e oportunidades para resoluções de conflitos, mudanças de comportamentos, atitudes e melhor compreensão do nosso papel social enquanto homens na estrutura em que vivemos”.

Apesar desses coletivos estarem ganhando força e terem se multiplicado nos últimos anos, incluindo recortes como raça, paternidade, espiritualidade e sexualidade, é difícil romper não apenas com estruturas muito fortes, mas também com compreensões adquiridas desde a fase pré-verbal. 

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(Fabrizio Lenci/Ilustração)

“O homem adulto é chamado a iniciar processos terapêuticos profundos, doloridos e desconfortáveis para começar a ter intimidade com ele mesmo. Antes de ter um relacionamento sadio com uma mulher ou outro homem, a primeira DR tem que ser consigo mesmo”, afirma Piamonte. “São movimentos que implicam em grandes questionamentos a respeito do que eu sou, do que faço e o que é importante para mim. Quando aprendemos a abrir mão das coisas que lá no fundo sabemos que são ‘coisas de homem’, é comum a gente se sentir um pouco perdido e desconfortável, mas acho que é um caminho. É uma busca que faz muito sentido trilhar, não é um resultado”.

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Fabrizio Lenci. Confira mais de seu trabalho aqui.

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