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Ambiguidades reais

Mary Gaitskill tateia as complexidades da vida em sociedade nos seus romances, contos e ensaios sobre a natureza humana

por Paula Jacob, de CLAUDIA 4 Maio 2022 00h24
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(Clube Lambada/Ilustração)

em todo mundo quer falar sobre consentimento, nem todo mundo quer falar sobre desejo e obsessão. Nem todo mundo quer, na verdade, encarar as ambiguidades próprias e alheias, reduzindo-as a recortes específicos, analisadas com um total de zero profundidade. Não para Mary Gaitskill. A autora americana ficou conhecida pelo seu livro de estreia, Mau Comportamento (1988), que se tornou, quase imediatamente, um cult da literatura norte-americana. Mais de 30 anos depois, os contos obscuros sobre a vida noturna de Nova York voltam às prateleiras, agora em português, publicados pela Fósforo – que lança também Isso é Prazer + As Dificuldades de Seguir as Regras. Nascida em 1954 em Lexington, no Kentucky, Mary começou a escrever histórias aos 6 anos. Foi no final da adolescência, porém, que, com ajuda de professores e mentores, ela decidiu que seguiria carreira no universo literário. Dona de uma voz autoral e capaz de tatear assuntos tidos como polêmicos, a escritora nos presenteia com narrativas verdadeiramente humanas – nada mais complexo que isso, como você vê na entrevista a seguir:

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Quando você começou a escrever?
Como uma escritora mesmo, aos 23 anos. Mas comecei muito jovem, era algo muito natural para mim. Quando tinha 6 anos, logo depois de aprender a escrever, a primeira coisa que fiz foi uma história de amor. Um pouco mais velha me aventurei nos quadrinhos e nas fantasias – amava O Senhor dos Anéis. Na adolescência, quis criar histórias como as de J.R.R. Tolkien, mas era muito ruim. Como saí de casa aos 15, senti essa defasagem acadêmica e fui atrás de um diploma de educação geral, que me dava acesso à Community College, onde meu pai lecionava. Ali, pedi incentivo a um professor que me ajudou com mais tarefas e trabalhos para conseguir melhorar a minha escrita. Ele foi a primeira pessoa a me dizer que eu tinha talento. Depois, na faculdade, me desconectei dos workshops literários para me conectar com outro mentor, que me deu muito suporte acadêmico. Uma terceira figura importante na construção da minha voz literária foi o dono de uma livraria perto da minha casa. Era uma pessoa que passava o dia lendo, de tudo. Então senti que poderia me auxiliar com os feedbacks.

Quais são seus autores preferidos?
O Tolkien, com certeza, era fascinada por todos os livros do Senhor dos Anéis.  Crescendo, li muita coisa, boa e ruim. Só fui prestar atenção em grandes autores à medida que ia evoluindo na escrita. Adorava Gabrielle Colette, D.H. Lawrence, Tom Wolfe e Margaret Atwood.

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Você transita por diferentes gêneros literários. Tem algum que você goste mais de fazer?
Já escrevi contos, romances e ensaios. Não tenho um favorito, porque acredito que tudo depende de qual história você quer contar e como ela fica melhor. Veronica, por exemplo, nasceu como um conto, mas depois de 100 e poucas páginas, percebi que poderia virar um romance.

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(Derek Shapton/Divulgação)

Existe um movimento forte de fomentar a leitura de autoras mulheres hoje. Você, enquanto autora, sentiu alguma mudança no mercado editorial ao longo da sua carreira?
Imagino que no Brasil seja diferente, mas aqui nos Estados Unidos o foco das editoras, agora, é publicar autores negros e latinos – principalmente mulheres negras. É mais sobre uma diversidade racial que de gênero. Eu gosto de vários autores brancos, homens, cis, mas eles esgotaram o que tinham a dizer. Afinal, estão sendo publicados há muito tempo. A energia criativa dos escritores negros e latinos tinha sido pouco explorada. Essa necessidade de expressão tem muito a nos oferecer em termos de conteúdo.

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“Gosto de vários autores brancos, homens, cis, mas eles esgotaram o que tinham a dizer. Afinal, estão sendo publicados há muito tempo. A energia criativa dos escritores negros e latinos tinha sido pouco explorada. Essa necessidade de expressão tem muito a nos oferecer”

E você acha que isso influencia em como as personagens são retratadas?
Na literatura, não tenho visto uma coisa que percebi acontecendo bastante na TV e no cinema: a vontade extrema de transformar as personagens femininas em fortes e vitoriosas, o tempo todo. Particularmente, não gosto disso. Parece que a agenda se sobrepõe ao conteúdo, e aí as histórias ficam falhas. Veja Bela Vingança, por exemplo, a protagonista mora em uma cidade pequena e finge estar bêbada ou drogada para atrair homens que seriam “bem intencionados”, que a levam para casa, mas tentam, apesar do estado inconsciente, transar com elas. É um milagre 1) ninguém na cidade falar sobre essa mulher que se vinga de homens; 2) ela conseguir sempre se impor com muita facilidade diante desses caras; 3) ela nunca, de fato, sofrer algum tipo de violência. Apesar do final ser interessante, é uma história falsa.

Como você lidou com o sucesso de Mau Comportamento na época do lançamento?
Foi muito difícil, não estava esperando nada parecido. E não é que foi um best-seller nacional ou algo do tipo, mas ele chamou muita atenção de um ciclo específico de pessoas, principalmente em Nova York. Esperavam que eu fosse alguém sofisticado, que fosse capaz de ler a mente das pessoas e entender todo mundo. Posso ser perceptiva, mas não é algo sobrenatural. Em eventos sociais, sentia essa pressão por uma imagem que não era a minha. Isso me deixou tímida, me mudei para a Califórnia, numa casa de campo, para ficar comigo mesma. Estava cansativo demais toda essa atenção e as expectativas que as pessoas criaram sobre mim por causa desse livro.

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(Editora Fósforo/Divulgação)

O livro está sendo publicado em português agora. Como você enxerga o conteúdo dele hoje?
Fico surpresa (e feliz) que o livro tenha uma vida longa de prateleira. São histórias que escrevi quando nova, sabia pouco sobre a vida, sobre o mundo naquela época. Eu era ingênua – e talvez seja isso a grande qualidade do livro. Pessoas ingênuas não fazem suposições sobre nada, elas simplesmente prestam atenção e observam os outros com mais cuidado. O que desgosto dos livros contemporâneos é justamente essa vontade dos autores de quererem se mostrar sábios demais, entendidos demais sobre como as pessoas são. Quando fiz o Mau Comportamento, não entendia o que estava vivenciando. Acho engraçado ele ser visto como algo de tanta sabedoria e maturidade (risos).

“Eu era ingênua – e talvez seja isso a grande qualidade do livro. Pessoas ingênuas não fazem suposições sobre nada, simplesmente prestam atenção e observam com mais cuidado. O que desgosto dos livros contemporâneos é justamente essa vontade dos autores de quererem se mostrar sábios demais”

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No livro Isso é Prazer você aborda uma questão bastante atual, sobre #MeToo, cancelamento. Por que você decidiu escrever essa história do ponto de vista do assediador e da colega dele?
Para mim, não foi uma decisão, era natural fazer desse jeito. Se fosse só sobre Quinn, seria chato, porque ele não é um personagem que se questiona do que faz ou deixa de fazer, e o impacto disso na vida das outras pessoas. Margot, por outro lado, é necessária por somar à narrativa essa ambiguidade interessante. É amiga pessoal e colega de trabalho, gosta dele, mas sabe que ele faz coisas que deixam outras mulheres desconfortáveis… Sente raiva dele, e se pergunta por que. Normalmente, quando você sente esse desconforto em relação a alguém, existe algo a ser observado. Ele, por sua vez, é um personagem interessante porque não está fazendo coisas grotescas, é sutil na sua forma de abordar as pessoas. Enquanto algumas das mulheres brincam, flertam, tornando tudo uma situação ambígua. Elas, em algum ponto, dão o consentimento, mas ficam surpresas dele realmente fazer alguma coisa. Ele, recebe esse consentimento e faz, porque entende como uma permissão. Porém, para mim, ele não pode ficar surpreso com as possíveis consequências desses atos.

Falando sobre consentimento, essa é uma pauta em alta hoje. Como você vê isso na sociedade?
Estou velha, me sinto desconectada da realidade de dates de hoje (risos). Minha realidade é acadêmica, não sei o quanto isso mudou ou não fora da minha bolha. Mas, no passado, existia esse mito de que dizer “não” significava “sim”, num modo de flerte ou de se fazer de difícil. Éramos criadas para sermos “doces”, “boas meninas”, “seguir as regras”. Tinham algumas meninas que se sentiam seduzidas dessa forma, era normal dentro das regras da sociedade naquela época. A narrativa mudou no final dos anos 60, quando a mulher passou a ter o direito de desejar também. O que acabou criando uma confusão de outra ordem: “ah! agora então eu tenho que desejar”. No meu caso, aprendi que ao não querer algo, precisaria verbalizar com todas as letras: n-ã-o, porque existia essa imposição social de me fazer ser agradável o tempo inteiro. Somado a isso, passei por um estupro, aos 16, então tinha medo de dizer não. Era algo inconsciente de achar que, ao dizer não, o cara iria me estuprar, necessariamente.

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Esse momento do “não” aparece no ensaio A Dificuldade de Seguir as Regras, né?
Lembro vividamente deste dia. Já era mais velha, tinha saído com um cara legal, interessante, mas não queria transar. Ele insistiu algumas vezes e eu estava fisicamente o afastando de mim. Comecei um diálogo dentro da minha cabeça: “apenas diga, vai ficar tudo bem”. Verbalizei, ainda assim ele tentou mais uma vez, até eu repetir com mais firmeza. Isso é algo muito difícil para as mulheres fazerem, acredito que por sermos sempre educadas a agradar, sermos fofas e meigas. Quando falamos não, somos escrotas. Os homens precisam saber lidar e controlar as suas vontades, e as mulheres precisam de alguma forma aprender a falar o que querem ou não. Ambos precisam ser responsáveis [nessa troca afetiva ou sexual]. Honestamente, não entendo porque essa ideia é vista, por vezes, como controversa ou radical.

“Acredito que, por sermos sempre educadas a agradar, sermos fofas e meigas. Quando falamos não, somos escrotas. Os homens precisam saber lidar e controlar as suas vontades, e as mulheres precisam de alguma forma aprender a falar o que querem ou não”

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