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O corpo e o crime

Antropóloga Beatriz Accioly Lins lança livro investigando violências sofridas por mulheres que compartilham nudes

por Alexandre Makhlouf e Artur Tavares 10 out 2021 22h22
Q

ual o limite da intimidade em um mundo totalmente digital, onde as barreiras entre o que é real e aquilo que é criado como um discurso narrativo se confundem? Estamos em uma sociedade que aprendeu a conhecer novos interesses amorosos na internet, e a própria rede é uma ferramenta importante para manter um clima de sedução no ar. Com as facilidades da tecnologia, é claro que passaríamos a compartilhar fotos dos nossos corpos nus com nossos parceires. Mas, o que pode acontecer depois do clique?

Nos últimos anos, o Brasil viu explodir o número de registros de violências contra a mulher, mas não apenas no ambiente físico, como também no virtual. Cada vez mais, são elas que sofrem com a exposição promovida por terceiros, por chantagens, pela destruição de reputações através da “pornografia da vingança”.

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Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, além de Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença, Beatriz Accioly Lins tem longa história na análise de questões sobre violência contra a mulher. Autora de publicações sobre a Lei Maria da Penha e também de análises sobre preconceito de gênero em âmbitos escolares, ela acaba de lançar seu novo livro, Caiu na Net: Nudes e exposição de mulheres na internet, em que percorre todo o caminho do nude, da foto até o momento em que ele pode se tornar um pesadelo. Nós conversamos com Accioly:

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(Beatriz Accioly Lins/Arquivo)

Nas próximas semanas, completam-se três anos da inclusão dos crimes virtuais contra a mulher dentro da legislação. Mesmo com muitas evoluções nesse campo, ainda vemos diversas mulheres passarem por essas situações criminosas. Por que tantos homens ainda praticam essas violências? É, de alguma forma, institucionalizado que eles se sintam nesse “direito”?
As violências contra mulheres que são mediadas pelo digital seguem o mesmo padrão das violências contra mulheres que ocorrem em interações fisicamente presenciais. A existência de leis específicas, como a Lei Maria da Penha e a inclusão de uma série de condutas online em nosso Código Penal, tem um importante papel tanto para que essas mulheres tenham acesso ao sistema de justiça, quanto para que possa haver algum tipo de punição. No entanto, criminalizar condutas, por si só, não funciona como forma de prevenir a violência contra mulheres.

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(Pexels/Jack Jarosz/Pexels)

Com o aumento de movimentos como o Body Positive e constante exposição que temos nas redes, muitas mulheres acabam ficando vulneráveis sem muitas vezes saberem que estão nessa posição. Existe alguma maneira de, mesmo compartilhando o corpo e conteúdos que envolvam nudez, ainda que sem caráter sexual –, as mulheres consigam se proteger?
É muito complicado colocar o ônus da proteção na vítima. De maneira geral, não há nada que uma mulher possa fazer para se proteger de uma violência porque a causa da violação é a decisão do violador e não alguma conduta ou característica daquela mulher. Pensar que é possível se antecipar a uma violência é contraproducente e acaba responsabilizando a vítima pela violação sofrida. Acho mais útil conversarmos sobre o que fazer caso as mulheres passem por violações, que é conhecer seus direitos, buscar ajuda e ter uma rede de apoio que possa ser acionada para acompanhá-la nesse caminho.

“É complicado colocar o ônus da proteção na vítima. Não há nada que uma mulher possa fazer para se proteger de uma violência porque a causa da violação é a decisão do violador. Pensar que é possível se antecipar a uma violência é contraproducente e acaba responsabilizando a vítima”

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Além da importância jurídica, queria saber se existiram outras motivações para tocar nesse tema – se alguma mulher próxima de você já passou por isso, por exemplo.
Trabalho há muitos anos com esse tema, então eventualmente fui ajudando pessoas conhecidas e descobrindo histórias passadas de mulheres próximas a mim, mas não, não me inspirei em uma história pessoal para entrar nessa atuação.

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(Editora Telha/Divulgação)

A “pornografia de vingança” ficou mais sofisticada e mais possível de acontecer com a popularização dos nudes e seu caráter muitas vezes empoderador. Qual a parcela de responsabilidade que as próprias redes sociais têm nesse contexto para coibir e responsabilizar os agressores? Como isso funciona no Brasil?
As plataformas são juridicamente responsabilizáveis pelo Marco Civil da Internet, em seu artigo 21, se não retirarem conteúdos íntimos não consentidos do ar uma vez acionadas pela vítima. Isso é o que diz a lei. Na prática, acompanho muitas mulheres que tentam se valer desse instrumento jurídico e não conseguem retirar esses conteúdos. Ainda temos que avançar muito na responsabilização das plataformas de redes sociais.

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Falando nisso, caso uma mulher se encontre nessa situação e tenha uma foto íntima vazada, como ela deve proceder?
É difícil fazer uma “receita de bolo” para mulheres em situação de violência, mas o ideal é sempre buscar ajuda. O silêncio só ajuda ao agressor. O mais importante é dar print de tudo, mesmo que muitas vezes seja doloroso. Prints de vazamentos funcionam como provas. Em seguida, é importante buscar delegacias. Se na cidade houver delegacias especializadas no atendimento a mulheres, melhor. Existem iniciativas de auxílio a pessoas em situação de violação de direitos na internet, como a ONG Safernet.

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(Denise Duplinski/Pexels)

Existe alguma forma de se resguardar de uma possível exposição ou vazamento antes de isso acontecer? Alguma medida de segurança que as mulheres possam usar para que as imagens não sejam vazadas?
Do ponto de vista jurídico, isso existe no Marco Civil da Internet, por exemplo. Contudo, para além de existirem, leis têm que ser colocadas em prática.

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Sabemos que, mesmo existindo uma punição formal para esses criminosos, os danos às mulheres são muito mais extensos e não mensuráveis, com ataques a suas reputações – um conceito e uma consequência extremamente machistas. Faz sentido pensar que, além de responsabilizar esses criminosos, deveriam ser criadas leis que protegessem as mulheres depois que vazasse uma imagem íntima, por exemplo?
Certamente é fundamental avançar na discussão com operadores/as do Direito sobre o respeito à autonomia sexual e ao livre exercício da sexualidade como direitos fundamentais. O judiciário reflete as moralidades vigentes e muitas vezes acaba revitimizando as mulheres.

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