Uma das revelações da música brasileira contemporânea, Kaê Guajajara une saberes e lutas ancestrais às melodias que embalam pistas de dança em todo o país
por Artur TavaresAtualizado em 14 mar 2022, 15h32 - Publicado em
14 mar 2022
01h30
beat entra seco, mas não causa estranheza. Por todo o Brasil, o trap tornou-se a música da noite. Só que, na voz de Kaê Guajajara, nada de conversa mole sobre bebida, carros, mulheres. Com ela, o papo é reto: “tic-tac, tic-tac, o agro não é tech, não é pop, também mata”.
Natural de uma aldeia indígena não-demarcada onde viviam Guajajaras e Tupinambás, localizada no estado do Maranhão, e cria do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, Kaê vive desde pequena um intercâmbio cultural de mundos totalmente distintos. Cresceu como brasileira em uma das maiores favelas nacionais, mas nunca deixou de lado as raízes ancestrais.
No final de 2021, Kaê lançou seu primeiro álbum, chamado Kwarahy Tazyr, depois de uma caminhada de outros bons anos que já tinham rendido três EP em sua carreira. Chamou a atenção da mídia especializada em música e também da Natura Musical, braço da companhia de produtos cosméticos, que no início de 2022 distribuiu mais de R$ 5 milhões para artistas brasileiros através de um edital. Contemplada, a rapper prepara uma turnê que rodará o Brasil a partir de junho.
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Kwarahy Tazyr é cantado em português e em ze’egete, a língua originária dos Guajajaras. As letras são completamente políticas, e disparam não somente contra o agronegócio, mas também contra as injustiças sistemáticas contra a natureza e os povos que estavam aqui antes de nós.
Corajosa, mãe de uma garota, Kaê também é atriz e arte educadora. Sua tripla [quádrupla, quíntupla] jornada é o retrato de muitas mulheres desse país: “Essa autoestima que temos hoje foi construída aos poucos, sobre um entendimento de que apenas falando é que vamos existir. Porque se eu estiver com medo, não vou falar, apreensiva de ser julgada. Se eu continuar tendo essa atitude, vou continuar não existindo. Vai continuar não existindo políticas públicas e esse mundo preto no branco do jeito que está.”
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Kaê, queria começar ouvindo um pouco da sua história. Você é guajajara, mas cresceu na Maré. Como foi sua infância, sair de uma área indígena para um dos maiores complexos de comunidades carentes no Rio?
Vim de uma aldeia não demarcada. Não fazíamos nenhuma troca com a FUNAI, não havia política ali. Estávamos todos em condições de escravidão e pobreza, trabalhando para ganhar farinha em troca. Havia também muita violência envolvendo madeireiros e latifundiários.
Minha mãe e minha avó queriam coisas melhores, queriam receber dinheiro pelo trabalho, para sair daquela margem. E aí, minha mãe tinha sido mandada muito jovem para o Rio de Janeiro, com 14 anos, para trabalhar em casa de brancos na Zona Sul. Começou a ganhar um dinheirinho e mandar para a minha avó. Foi assim até ela conhecer meu pai, que morava no Complexo da Maré. Ela engravidou de mim e foi para o Maranhão para me oferecer as coisas de lá, fora da cidade. Ela queria estar lá na aldeia.
Fiquei indo e voltando da aldeia para a Maré durante muito tempo. Vim de vez para cá com nove anos. Foi aí que comecei a assimilar. O início dos estudos foi muito difícil, não era fácil me relacionar com as pessoas. Era tudo muito diferente, tudo muito novo. E com tudo isso vinha muito racismo, e lutar contra isso desde muito nova foi o que me fortaleceu para fazer o que faço hoje.
Você deve ter enfrentado preconceito tanto por ser indígena quanto por morar em uma comunidade no Rio de Janeiro, além de ser mulher…
Hoje, depois de muito tempo de autoconhecimento, também me identifico como não-binária, mas entendo ter um alinhamento feminino, e estou OK com isso. Isso também faz parte de uma busca interior de muito tempo. Foi difícil essa questão de estar na Maré porque as pessoas se surpreendiam com indígenas por lá. As pessoas acham que você não é dali mesmo. Hoje em dia, já sabem que sou cria da favela. Sei de mais coisa que muito playboy na pista. E falo com orgulho que sou indígena favelada. Tem que assumir para não ficar nessa bolha de que o indígena está em um lugar e o favelado em outro.
“Foi difícil essa questão de estar na Maré porque as pessoas se surpreendiam com indígenas por lá. As pessoas acham que você não é dali mesmo. Hoje em dia, já sabem que sou cria da favela. Sei de mais coisa que muito playboy na pista. E falo com orgulho que sou indígena favelada”
Você cresceu se identificando como indígena?
Não tinha como não me identificar. As pessoas faziam questão de falar: “Olha lá a índia!” Até hoje, minha mãe e eu somos reconhecidas assim. Isso nunca soou bem para mim, mas minha mãe não deixava eu me escancarar. Ela tinha muito medo de eu me afirmar com todas as garras, de passar urucum, e tchau. Falava pra eu andar normal, porque o mundo é muito cruel, dizia que eu sofreria alguma violência. Infelizmente, acabei sofrendo muitas violências e não foi por estar pintada.
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Você aprendeu a falar ze’egete desde pequena?
Isso veio como uma afirmação. Minha mãe achava uma besteira eu aprender toda a língua com a minha avó, até porque ela veio cedo pra cá. Eu que criei o interesse de aprender. É uma coisa nossa, não podemos deixar morrer. Aprendi com professores dentro de terras demarcadas, e hoje em dia, com a tecnologia, isso facilitou muito. Converso muito com meus parentes pela internet. Ainda não sou fluente, mas consigo me comunicar e colocar nas minhas músicas.
O que veio primeiro? O rap ou as questões indígenas? Como essas coisas são costuradas na sua música?
A questão indígena veio primeiro que tudo isso, porque tem a ver com a minha identidade. Eu já sabia que era mas estava distante do meu povo. Então, quando você sofre uma violência ainda cedo, vai muito mais da sua vontade de estar ali de novo, de se reconectar. A cidade é etnocida, te apaga, vai te tornando um brasileiro. Eu me via e ao mesmo tempo não me via nas pessoas. Muita gente dizia que eu não existia, que os indígenas morreram há muito tempo, e que hoje só existem cidades. Foi complicado por isso.
Então, pensei. Se não existo, vamos fazer. Hoje em dia, me considero uma artista que faz música popular originária, porque vejo que todos esses ritmos que me atravessaram na Maré, como o trap, o rap e o hip-hop, se mesclam com elementos da minha cultura. E, na minha música você vai ver a língua originária, maracás, cantos ancestrais, as formas como nos colocamos, deixo isso muito presente. É para que as pessoas vejam que estamos em 2022 e fazendo diferente.
“A cidade é etnocida, te apaga, vai te tornando um brasileiro”
Você também transforma os cantos tradicionais em rap?
Não. Faço os cantos tradicionais nas aberturas de shows, ou entre uma música e outra. Não coloco os cantos em outros ritmos. É mais sobre falar da realidade indígena, tanto em português quanto em ze’egete, e também em inglês, como já fiz, para pessoas fora da bolha. O ritmo, na real, é usado para chamar as pessoas. Eu poderia estar aqui cantando sobre minha realidade acompanhada de um maracá, mas, no entanto, as pessoas não iriam ouvir. Vão ouvir um rap sobre minha realidade, e não o contrário. É unir o útil com o agradável.
Você é uma artista completa. Faz rap, já escreveu um livro, é atriz, trabalha como arte educadora. Além de tudo, você também é mãe. Como nossa conversa está acontecendo hoje, bem no Dia da Mulher, queria ouvir de você como é ser mulher e artista no Brasil tão doente que estamos.
Para as pessoas que se identificam como mulher, sejam mulheres cis, trans, mulheres pretas e de tantas etnias aqui dentro do Brasil, digo que elas ainda estão passando por uma colonização. Ser mulher no Brasil é ter coragem, e também lutar contra a colonização. Porque não temos como lutar apenas contra o patriarcado e deixar que a colonização passar por cima de corpes trans, de mulheres indígenas e mulheres pretas. Temos que ter cuidado quando falamos dessa luta, principalmente nesse dia, porque precisamos conseguir enxergar a margem, enxergar quais são as mulheres que estão no Brasil e como elas estão sendo atingidas.
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Você mencionou o fato de ser não-binária, e eu queria saber de você encara essa interseccionalidade de lutas, do ser indígena e de estar no espectro LGBTQIA+.
Acho que cada pessoa luta por aquilo que vive em sua realidade, mas acima de tudo todos nós somos pessoas que respiram. Estamos vivendo dentro de um Estado que cotidianamente comete crimes ambientais, ecocídios e tantas coisas que estão indo contra nossos corpos. Hoje em dia, não é somente o indígena, o preto, o LGBTQIA+ que estão resistindo no Brasil. As pessoas brancas também vão parar de respirar e de beber água potável. Estamos nos unindo pela urgência.
Agora, na última Conferência Climática da ONU, tinha bastante pessoas pretas no evento. Achei isso o máximo, porque as edições anteriores ficavam entre brancos e indígenas. Parecia que só nós estávamos interessados. Mas interessados entre aspas, porque é como minha música fala: o exército sabe onde está o garimpo. Tem satélites pra isso, mas o Estado não quer combater.
Então, por pior que seja essa expressão, estamos todos no mesmo barco, uns mais ferrados, outros menos. No entanto, há uma grande chance de unirmos nossas lutas em prol de um bem maior, que é nossa própria vida. Se ficarmos fazendo somente o discurso da nossa própria luta, acabaremos apagando os outros.
Você falou de um momento da sua vida em que questionavam o fato de você ser indígena. Quais as “ideias mais erradas” que os brancos têm dos indígenas?
Eles acham que todos nós somos parte do mesmo povo. O povo indígena. O índio. Não imaginam que hoje somos mais de 300 povos, mais de 274 línguas. Éramos muito mais antes da colonização. Eles não entendem essa diversidade, e não apenas estética, quanto de pensamento. Nosso mapa mental é diferente de uma pessoa que só é criada na cidade por uma família branca. É uma vivência completamente diferente.
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O outro erro é a palavra índio. O colonizador chega aqui nos chamando de índios, por achar que estava nas Índias, e aí descobre que não, mas continua nos colocando de forma pejorativa. Em todo o Brasil se fala do índio. E quem é o índio? A pessoa que mora na floresta, que não tem tecnologia e inteligência algumas, que é uma pessoa arcaica, que não sabe nada. O estereótipo do indígena fala mal português, não tem nenhuma formação, não está nem um pouco por dentro de nada. Ou que seja burro. A pessoa não pode ser diferente.
Também tem o erro de achar que o indígena só está na aldeia, sem levar em consideração todo o processo de violência e etnocídio brasileiros. As pessoas não sabem que ainda estamos aqui. E estamos onde? Por acaso houve algum tratado de emancipação, alguma lei que diz que temos que ficar apenas em aldeias? Não! Nós fomos sobrevivendo.
“As pessoas não sabem que ainda estamos aqui. E estamos onde? Por acaso houve algum tratado de emancipação, alguma lei que diz que temos que ficar apenas em aldeias? Não! Nós fomos sobrevivendo”
Hoje, vem aumentando a visibilidade dos indígenas nas artes brasileiras. Você acredita em uma espécie de colonização ao contrário através da mídia?
Acredito que a arte e o poder que essas tecnologias trazem. A facilidade de postar uma coisa aqui e mais de 100 mil pessoas, um milhão de pessoas verem. É possível fazer essa ideia chegar mandando daqui. Da mesma forma, a colonização foi feita sem internet. Acredito que, hoje em dia, com a facilidade de informação, as pessoas podem escolher se serão racistas ou não. Há conhecimento do que é.
Qual a melhor maneira de furar a bolha?
Penso assim: eu lanço um reels no Instagram e uma pessoa que curte rock, que vive em uma bolha reprodutora de colonização, acha interessante o que eu falei. Ela curte, compartilha e comenta. Quando você interage com esse conteúdo, está dizendo para o algoritmo na internet que gosta daquilo, e que quer que ele chegue em outras pessoas da sua bolha. O próprio algoritmo começa a te indicar mais e mais desses vídeos, e começa a aparecer para suas bolhas. É hackear o algoritmo, compartilhar esses conteúdos para que eles tenham a possibilidade de adentrar sua bolha a partir de sua interação.
Você lançou no final do ano passado seu primeiro disco Kwarahy Tazyr, que foi super bem recebido pela imprensa especializada. Como foi a gravação desse álbum?
Foi um processo muito doloroso, porque estou falando de coisas que as pessoas não sabem que existem. Fui muito questionada sobre minhas vivências. A todo momento preciso dizer: “eu sou isso aqui”. Porque muitas pessoas, tanto de dentro quanto de fora do movimento indígena, questionam. Me perguntam porque não vim de uma terra demarcada, porque não tenho o estereótipo do indígena, e muitas outras coisas. É sempre uma questão de se reafirmar, de contar a história, de dizer que existem muitas vivências e muitas táticas de sobrevivência para o Brasil.
Essa autoestima que temos hoje foi construída aos poucos, sobre um entendimento de que apenas falando é que vamos existir. Porque se eu estiver com medo, não vou falar, apreensiva de ser julgada. Se eu continuar tendo essa atitude, vou continuar não existindo. Vai continuar não existindo políticas públicas e esse mundo preto no branco do jeito que está.
É preciso autoestima, foi difícil e continua sendo difícil, porque isso vai doer a vida inteira, mas acredito que, aos poucos, de tempo em tempo, vamos ver brasileiros mais tolerantes com povos originários quando encontrá-los em qualquer vivência.
“Se eu estiver com medo, não vou falar, apreensiva de ser julgada. Se eu continuar tendo essa atitude, vou continuar não existindo”
Você já está fazendo shows, como está a turnê?
Estou tocando, mas ainda não sai em turnê. Vai começar em junho, e em julho lanço o álbum visual de Kwarahy Tazyr. Estou gravando clipes de todas as músicas nesse momento.
No começo desse ano, você ganhou um apoio da Natura Musical para continuar desenvolvendo seus projetos. Como esse suporte ajudou na sua carreira?
Pensando que nós, artistas indígenas, não somos chamados para tocar nos lugares… quando se fala em rap, pensam nos pretos, se é outro tipo de música, pensam no branco. Ninguém quer a música indígena, não imaginam que estamos falando sobre a nossa realidade em cima de ritmos que a galera vai ouvir. Ainda não nos veem como artistas de fato. Isso gera menos shows, menos agenda, menos atividade. Só lembram de nós quando precisam preencher a cota do indígena. Não é por conta da minha música, da minha arte, do que tenho pra falar. É pra ter um. Sempre somos os únicos nos lugares que vamos. O apoio foi importante para que eu possa fazer esses shows acontecerem. E mais, retratar as vivências LGBTQIA+ indígenas nas cidades por onde vou passando. Vou conversar com as pessoas, filmar, ter a possibilidade de expor minha mensagem por meio da música de uma forma autônoma.
Você tocou em um assunto que muitos dos nossos entrevistados falam, de que a conversa de inclusão é uma armadilha, porque sempre te coloca no lugar da cota e não de um ser humano. Como você vê isso?
Vejo exatamente isso. Todos esses poucos trabalhos que aparecem pra mim são nessa pegada de inclusão, e nunca por eu ser artista, por meu trabalho ser bom. Não tem muita oportunidade, e quando tem é essa picada. Aí fica nisso. Me chamam para rodas de conversa LGBTQI, rodas de conversa indígena, mas sempre isso. Não estou em um setlist de um festival, não sou uma grande atração tanto quanto outros não-indígenas.
Qual o feat dos seus sonhos?
[Berro] Ai, o feat dos meus sonhos… Mayra Andrade e Flora Matos. Só isso, só.