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Jonathas de Andrade: “Vivemos um cenário politicamente desolador” 

O artista alagoano, que representará o Brasil na Bienal de Arte de Veneza, conversou conosco sobre como as questões sociais atravessam suas obras

por Beatriz Lourenço Atualizado em 8 abr 2022, 14h35 - Publicado em 8 abr 2022 00h41
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(Clube Lambada/Ilustração)

este exato momento, o alagoano Jonathas de Andrade está produzindo arte. Ele foi escolhido pelo curador Jacopo Crivelli Visconti para participar do pavilhão brasileiro da 59º Bienal de Arte de Veneza, que acontece entre 23 de abril e 27 de novembro deste ano. Adiada desde 2020, a mostra ganhou o título The Milk of Dreams – O leite dos sonhos, em tradução livre, uma referência aos desenhos da artista surrealista Leonora Carrington que foram transformados em livro infantil.

Para Cecilia Alemani, curadora desta edição, a mostra terá três temas distintos: “A representação de corpos e suas metamorfoses; a relação entre indivíduos e tecnologias e a conexão entre os corpos e a Terra.” Apesar da exibição brasileira ser independente, a obra de Jonathas atravessa esse contexto. Seu mais novo trabalho, criado para o evento, é chamado Com o coração saindo pela boca. “Ele parte de uma coleção de expressões populares relacionadas ao corpo que usamos na linguagem corrente do dia a dia para traduzir situações e sentimentos particulares, e que curiosamente muitas delas tem relação com a temperatura política e o estado das coisas do Brasil atual”, revela o artista.

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Seu jeito autêntico de trabalhar junta a poesia, a crítica social e a identidade. É possível perceber isso de forma clara com a exposição “Museu do Homem do Nordeste”, que consiste em uma série de imagens de trabalhadores nordestinos que posam com um quê de sensualidade. A coleção é um contraponto ao museu antropológico homônimo de Gilberto Freyre, criado em 1979 e existente até hoje no Recife. O local revisita a história colonial a partir de uma reunião de artefatos históricos. 

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“Propondo uma conversa histórica com o museu original e seu legado, tento encarar este título como se fosse o museu da masculinidade, e passo a buscar trabalhadores homens para fazer compor essa série de cartazes hipotéticos”, explica. “Há uma construção de autoestima e vaidade em cima dessas imagens e uma troca sensual com a câmera. Como se fosse possível o próprio museu incorporar a ideia de sensualidade e homoerotismo na sua imagem.”

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(Jonathas de Andrade/Arquivo)

As questões sociais, a desigualdade e a noção de comunidade estão presentes nas criações por serem discussões urgentes e relevantes para Jonathas. “Vivemos um cenário politicamente intenso e desolador no Brasil, e por mais que tentemos pensar em outra coisa, vêm para a pauta do dia questões históricas que, longe de serem superadas, voltaram com toda a força”, afirma. “É um país estruturado em abismos sociais, com um povo que experimenta fome e falta de acesso à educação e a oportunidades. Acredito que é preciso muita poesia para falar de opressão e ainda ter esperança na mudança, que me parece que é tudo que precisamos no momento.” Em meio a dias intensos de criação, Jonathas de Andrade conversou conosco sobre as expectativas para Veneza, seus projetos mais emblemáticos e as contradições entre realidade e ficção.

“O Brasil é um país estruturado em abismos sociais. Acredito que é preciso muita poesia para falar de opressão e ainda ter esperança na mudança, que me parece que é tudo que precisamos no momento”

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(Jonathas de Andrade/Reprodução)

Como você se aproximou da arte? Qual foi seu primeiro contato com ela e o que fez você se conectar?
Meu contato com a arte veio com um encantamento com a fotografia e o cinema, ainda na minha infância em Maceió. Eu carregava um fascínio com o design gráfico nas revistas e livros, em como as palavras e grandes títulos se relacionavam com as imagens de variadas formas, e também como via potência nas imagens em movimento que eu conseguia acessar pelos canais de televisão dos anos 80 e 90. 

Lembro de ter um magnetismo com uma ideia vaga do que era um museu, como um lugar que reunia objetos escolhidos para contarem histórias. Pensava em como elas poderiam ser contadas de maneiras diferentes, e como sempre tinha uma escolha envolvida por trás disso. Acho que aí fui entendendo como a arte se avizinhava da ideia de ficção e não-ficção, e como a ideia de verdade era de certa forma sempre um pouco relativa. Junto disso, o fato de ter nascido e crescido no Nordeste mexeu profundamente com meu entendimento de mundo e minha percepção das relações sociais e emocionais entre as pessoas. Acho que me sentir, de certa forma, pessoalmente diferente e inadequado foi a maior formação da minha sensibilidade, e isso foi me tornando atento às ambiguidades e às contradições humanas. 

Além disso, acredito que meu encontro com a arte tem a ver com algumas personalidades da minha família que me enchiam de histórias e de inspiração, bem como amigos-chave que foram calçando meus interesses que iam para tantas direções. Todas essas pessoas foram emprestando coragem e fôlego para que eu entendesse que dava pra inventar um ser-artista com uma colagem de interesses e de personagens internos, e foi na arte contemporânea que isso foi tomando forma de projeto a projeto, misturando fotografia, texto, instalação, filme… 


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o peixe (fragmento) | the fish (excerpt) from jonathas de andrade on Vimeo.

O que você procura mostrar com as suas obras? Há algumas que falam sobre educação, outras sobre a fome e, outras, sobre a noção de comunidade. São discussões necessárias no contexto atual?
Absolutamente. Tem um negócio radicalmente pedagógico em ver um grupo de pessoas que, diante de tantas restrições de uma sociedade desigual, responde com resistência, criação e força poética. A cultura no Brasil tem esse poder de ser catalisadora de subjetividades, de força política. Acho que é o que me faz querer fazer projetos com os carroceiros do Recife ou com a comunidade de surdos de Várzea Queimada. 

Tem algo poderoso e inspirador que é ver uma resistência poética em grupos sociais com coesão social, com a ideia de comunidade. Mas gosto de me aproximar dessas pessoas com dispositivos poéticos, que fazem de cada projeto uma aventura de pretexto a ser vivida junto, experimentada intensamente. As obras me fazem me aproximar das pessoas de uma maneira tão particular que eu não encontraria de outra forma, e isso é pessoalmente muito transformador. Gosto quando a obra resultante desse encontro leva ao público uma experiência que entre a fantasia e o documental – tudo embaralhado – requisita de quem vê a decisão sobre o que é que se fala. É ela própria que vai completar e decidir sobre o que a obra fala, a partir de suas vivências e seu repertório. 

Vivemos um cenário politicamente intenso e desolador no Brasil, e por mais que tentamos pensar em outra coisa, vem para a pauta do dia questões históricas que, longe de serem superadas, voltaram com toda a força. É um país estruturado em abismos sociais, com um povo que experimenta fome e falta de acesso à educação e oportunidades. Acredito que é preciso muita poesia para falar de opressão e ainda ter esperança na mudança, que me parece que é tudo que precisamos no momento, no presente-agora. 

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(Jonathas de Andrade/Arquivo)
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O tema da Bienal de Veneza é “The Milk of Dreams”. Como você interpreta o tema, o que você preparou para apresentar e qual é a expectativa para o evento?
Diante de um mundo tão politicamente absurdo, uma dose de delírio pode ser uma maneira de rearrumar as ideias e o corpo diante do caos, bem como acessar a chave da subjetividade e do onírico. Acredito na dimensão política da poesia. A realidade documental, factual, embora descabida e opressora, não irá anestesiar o corpo em sua potência política. 

O projeto do pavilhão do Brasil é curado por Jacopo Crivelli Visconti, e é curatorialmente independente da mostra geral da bienal. Entretanto, coincidentemente o projeto que trago para o pavilhão guarda relações com o tema geral bienal. O título é “Com o coração saindo pela boca”, e parte de uma coleção de expressões populares relacionadas ao corpo que usamos na linguagem corrente do dia a dia para traduzir situações e sentimentos particulares, e que curiosamente muitas delas tem relação com a temperatura política e o estado das coisas do Brasil atual. 

Para mim, expressões como “nó na garganta”, “embaixo do nariz”, “de revirar o estômago”, “língua afiada”, “carne de pescoço”, “sangue de barata”, “vergonha na cara”, “língua nos dentes”, “sangue nos olhos” trazem certo absurdo sensorial se levadas ao pé da letra. Mas também conversam com a temperatura política do momento, e de certa forma falam sobre a dificuldade de traduzir esse sentimento de um corpo brasileiro cheio de perplexidade e simbolicamente amortecido, estarrecido diante do estado do presente. Levadas ao pé da letra, as expressões trazem um universo lúdico e onírico que vão costurando com o político e se manifestando em fotografias, vídeo e esculturas na exposição. 

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(Jonathas de Andrade/Arquivo)

Segundo Cecilia Alemani, a curadora desta edição, a mostra terá três vias distintas: “A representação de corpos e suas metamorfoses; a relação entre indivíduos e tecnologias e a conexão entre os corpos e a Terra.” Como elas se relacionam com o seu trabalho? Você consegue citar exemplos?
Essas expressões que mencionei antes falam de pedaços de corpos seja um olho, uma perna, um coração ou uma garganta. Esse corpo dilacerado fala muito dos problemas sociais, políticos, sanitários, de representação e de fake news do Brasil hoje. Acho que a gente passa por um processo muito intenso de dilaceramento subjetivo no país. 

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O Brasil é um país que está passando por diversos problemas e contradições. Há desigualdades, crise política e preocupação sanitária. De que forma você pretende levar isso para a Bienal?
Diante de um cenário de crise aguda, vivemos também uma tentativa de dilaceramento da subjetividade. Isso tem uma dimensão política gravíssima. As obras procuram reunir através da força da linguagem uma alegoria do Brasil. Há algo de absurdo na literalidade dessas expressões, assim como há algo absurdo e inaceitável na literalidade dos acontecimentos concretos do presente. As expressões trazem fragmentos de corpos, e de seus sentimentos. É sobre este intraduzível que estou tentando falar. 

Um de seus trabalhos mais emblemáticos são os cartazes do “Museu do Homem do Nordeste”, que reúne imagens de diversos homens nordestinos. De que forma a obra conversa com a história do Brasil, as relações de classe e a sexualidade?
Neste projeto, criei uma série de cartazes para um museu fictício, que toma emprestado o título do museu homônimo criado pelo escritor Gilberto Freyre, e que existe até hoje em Recife. O título do museu carrega a palavra homem e usa para se referir à humanidade, ou sociedade de forma geral, como era comum no tempo em que surgiu, mas diante das discussões de gênero, soa sexista e questionável. 

Propondo um jogo de conversa histórica com o museu original e seu legado, tento encarar este título como se fosse o museu da masculinidade, e passo a buscar trabalhadores homens para fazer compor essa série de cartazes hipotéticos para o museu. Há uma construção de autoestima e vaidade em cima dessas imagens e uma troca sensual com a câmera. Como se fosse possível o próprio museu incorporar a ideia de sensualidade e homoerotismo na sua imagem, e como essa troca pessoal pudesse ser metodologia possível. 

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Há também um tensionamento com a construção de um estereótipo do Nordeste a partir da figura do trabalhador, e com essa série de não-ditos, o projeto tenta desvelar os vários tabus em torno de sexualidade, identidade e os cânones históricos e institucionais. Achei interessante trazer essas imagens cheias de poder e desejo como uma possível imagem institucional e reconhecer o tanto de proibitivo que esse gesto carregava. Isso é muito revelador de como a sexualidade é tanto um lugar potente, mas ainda um terreno pavimentado por certo moralismo e conservadorismo no Brasil.

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(Jonathas de Andrade/Arquivo)

Como você percebe as contradições de trabalhar com a fotografia? Ao mesmo tempo que são documentos, as imagens também são ficção e isso se mistura a ponto de confundir o espectador.
A fotografia carrega essa ambiguidade fascinante em ser tanto documental, quanto uma espécie de enquadramento do olhar e, enquanto enquadramento, ela é um processo de escolha – e não uma totalidade. Esse jogo de ambiguidade, ficção e documento é muito potente, principalmente hoje, quando as fake news manipulam escolhas e orientam o debate político. O treinamento do olhar crítico sobre o que se vê e de onde vem e de que forma aquela história é contada é um processo constante e urgente. Criar esses jogos de verdade e mentira no projeto de pequenas armadilhas da imagem são muito saborosos porque, de algum jeito, convidam o público a exercitar essa dimensão.

Outra obra emblemática é “Levante” – um filme que dá visibilidade ao problema dos carroceiros no Recife. São trabalhadores socialmente invisíveis que vêm sendo banidos das vias públicas e acabam ficando sem sustento. Como foi o processo criativo e burocrático para a gravação? Você percebe o seu papel de artista como político e de protesto?
O “Levante” foi um projeto que aconteceu em torno da primeira corrida de carroças do centro do Recife, que eu organizei distribuindo panfletos pela cidade com os carroceiros que transitam até hoje na cidade. Minha vontade era fazer um evento, uma situação, onde eles todos se reunissem com uma grande festa, um grande cortejo celebrativo pela cidade, onde a visibilidade deles seria incontestável. Isso se tornou possível com o pretexto de fazer um filme chamado “O Levante”. Pedi autorização para gravar o filme que tinha uma cena de corrida de carroças, e para os carroceiros, eu os convidei para uma corrida de carroças onde seria gravado um filme. 

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Para mim, é fascinante pensar que a arte era a grande chave, o grande mecanismo que tornava a existência daqueles carroceiros possível do ponto de vista da oficialidade. Só se encarada como ficção de uma corrida de carroças a presença deles na cidade poderia ser admitida publicamente, naquela quantidade, que é um delírio poético maravilhoso para falar da resistência, da resiliência e do eco rural que os carroceiros e suas famílias representam. 

É claro que a presença deles é atravessada por um Nordeste cheio de injustiças, pela falta de acesso à educação e às oportunidades e também com uma complexa discussão do direito dos animais. Ao mesmo tempo, aquilo também falava sobre uma dimensão social, da força daquele grupo e de como aquilo repercute na cultura, e no entendimento de um povo. Acho que meu trabalho atravessa discussões e observações políticas, mas não entendo meu trabalho como ativismo. O que faço é criar algumas situações de cunho artístico, subjetivo, poético que podem trazer à tona observações, reações político-poéticas que, com sorte, podem provocar e encantar mais gente por aí, e com isso ter um efeito inspirador, transformador. Acho que este é meu lugar instigante como artista, e é como quero amplificar a maneira que me coloco no mundo. 

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