Ay kakyri tama / Ynua tama verano y tana rytama [Eu moro na cidade / Esta cidade também é nossa aldeia]”. Pelos versos em tupi-kambeba, a poetisa e geógrafa Márcia Wayna Kambeba reivindica o que mais de 315 mil indígenas precisam afirmar todos os dias: estar na cidade não exclui sua identidade. Contra as investidas do senso comum que ainda tentam restringi-los ao isolamento na floresta e à nudez, os indígenas urbanos produzem arte, promovem ações educativas e disputam cargos eletivos. Suas vivências carregam 520 anos de estratégias de resistência, pelas quais afirmam: “Ruaia manuta tana cultura imimiua [Não apagamos nossa cultura ancestral]”.
Walter Kamaruara já perdeu as contas de quantas vezes ouviu a frase “Ah, mas você nem é tão índio assim” ao longo dos cinco anos em que tem vivido em Santarém, no Pará. A saída da aldeia onde nasceu foi precoce, já que em Pedra Branca, território pertencente à Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, não existem escolas de ensino médio. Quando cursava a graduação em História, Walter reparou o quanto o racismo – seja institucional ou cotidiano – afetava a ele e a outros jovens universitários.
“Minha impressão é que eu aprendia mais com os meus mais velhos do que naquela sala de aula, onde estudava sobre a história da Europa e via que muita coisa sobre o meu povo era contada de uma forma distorcida. Esse olhar da sociedade sobre a gente vai sendo absorvido, daí tem indígena que não quer se autodeclarar. Alguns colegas da faculdade diziam que não voltariam mais para casa depois que se formassem. Há um apelo muito forte para abandonar nossas raízes”, lembra.
“Minha impressão é que eu aprendia mais com os meus mais velhos do que naquela sala de aula, onde estudava sobre a história da Europa e via que muita coisa sobre o meu povo era contada de uma forma distorcida”
Walter Kamaruara
Se por um lado a cidade pressiona os jovens indígenas a abandonarem suas tradições e ancestralidade, Walter investe na afirmação desses valores a partir do Coletivo Jovem Tapajônico. Fundado em 2018, o grupo incentiva o engajamento social e a conscientização política com atividades nas comunidades ribeirinhas e nas escolas. Com paródias e videoclipes, os jovens abordam temas como desmatamento, agrotóxicos e, no contexto da pandemia do novo coronavírus, os cuidados para prevenção à covid-19.
“Os jovens sempre estiveram conectados em cuidar do território. Com 13 anos, a gente já alfabetizava as crianças mais novas, porque faltava professor. Até conseguimos uma biblioteca! Mas não havia uma consciência política de como a falta de representação está conectada com os problemas que a gente enfrenta. Eles viam os troncos de árvore sendo levados e não compreendiam que a ação das madeireiras representa uma ameaça para a aldeia e que, por isso, a questão da demarcação de terras é tão importante. Assistiam aos comerciais sobre o agro ser pop, mas estão descobrindo que na prática o agro é morte”, exemplifica o educomunicador, que atua junto a mais seis jovens indígenas da Floresta Nacional de Tapajós, do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago Grande e dos Quilombolas de Oriximiná.