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Histórias do reggae: Melô do Caranguejo

Na terceira reportagem sobre o gênero musical no Maranhão, uma atriz pornô americana vira hit de sucesso

por Bruno Azevêdo 16 out 2020 01h11
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(Clube Lambada/Ilustração)

ossa história começa com um jogo de espelhos. Pelo menos quatro. Um videoclipe. Muita luz: lilás, vermelho, laranja, uma quentura só, vindo de tudo quanto é lado. E uma silhueta. A bateria entra num bumbo-caixa dançante sincronizado ao jogo de luz. A silhueta ensaia um John Travolta discreto e ela surge como um sol, enquanto o baixo marca, paquerando com o piano. Andrea True aparece com seu body branco com fitinhas de cowgirl, pernas de fora, cabeleira loira armada, carinha de quem tá gostando demais e começar a cantar, anunciando que estamos nos tempos da brilhantina.

Mas, peraí, essa não é uma série sobre reggae? É. Só que essa é a história do Melô do Caranguejo, nada aqui é o que parece.

» LEIA MAIS: Na primeira reportagem dessa série, a história do Melô de Valéria, uma homenagem a uma das dançarinas de reggae mais queridas do Maranhão
» E MAIS: Na segunda reportagem dessa série, o amor de um locutor de rádio e uma fã se torna um melô

Se os nossos melôs costumam ter um compasso vagaroso, talhado à dança a dois, “lento, mas forte”, como alguém me disse um dia desses, o Melô do Caranguejo parece uma pedra que já rolou tanta ladeira que chega veloz, dando vontades de dançar um tico sozinho, nos saltitos; é uma canção com um pé no reggae, os ombros no merengue, a cabeça nas estrelas… e a mão nas partes.

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É que entre os vários espelhos naquele videoclipe, um continha a imagem de uma atriz pornô.

E a história desse melô é um jogo de espelhos.

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Quase como um reggae

“White Witch”, a Bruxa Branca, foi um LP lançado comercialmente em 1977. Era coisa grande, editado em pelo menos 12 países. Estávamos no auge da onda disco e The Andrea True Connection era a banda de um dos maiores hits das pistas: “More, more, more” levava a cantora ao estrelato pedindo mais, mais, mais, e o segundo disco era um investimento pesado. A capa mostrava uma Andrea sci-fi, barbarelesca, posando à frente de um enorme rosto de leão. No Brasil, a bolacha saiu com o selo de “sucessos da discoteca”, e o anúncio de que ali estava contido o hit “What’s Your Name, What’s Your Number”, provavelmente a febre do Lítero e do Jaguarema naquele ano.

Acontece que nesse disco, escondidinha como penúltima canção do lado B (nosso reggae é uma compilação de lados Bs), estava a música título, “White Witch”, uma espécie de reggae, aquele cujo refrão evoca um crustáceo, mas que os entendidos de inglês sabem bem que diz “what’s gonna get yaaaaaaa”. Só que não. O refrão do Melô do Caranguejo diz “White Witch is gonna get ya”, a Bruxa Branca vai te pegar. E este é só um dos engodos.

Na contramão dos melôs famosos no Maranhão, cuja inserção daria uma trama do James Bond, o Melô do Caranguejo não entrou na lógica da exclusividade. White Witch podia ser achado em qualquer birosca e tocava nas rádios desde os anos 1970, junto com “What’s Your Name, What’s Your Number”, ambas como música estrangeira, farinha do mesmo saco e esse saco não se chamava ainda reggae: “Tocou bastante no programa do Osmar Noleto, na rádio Ribamar”, me disse Chico do Reggae, investidor e colecionador de vinis. “Só que eu não sabia que essa música tava lá”. O Melô ficou ali, dormente num álbum de discoteque, tocando quando em vez numa festa ou noutra, ainda sem o carimbo de reggae ou pedra, enquanto Andrea rodava mundo como disco diva. O Melô foi caindo no esquecimento, enquanto o vinil, antes abundante, ia se tornando peça rara ao longo dos anos 1980.

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Capa de White Witch, de Andrea TRue Connection
Capa de White Witch, de Andrea TRue Connection (Arquivo/Reprodução)

Jailder, ex-DJ do Espaço Aberto, me disse o seguinte: “Essa música veio pro Brasil, o LP, ela não era exclusiva, não veio assim: ‘ah, foram pra Jamaica e compraram’. Ela chegou aqui no Brasil num disco comercial, só tem esse reggae lá no meio, aí o cara pegou e lançou. Tinha na Só Sucessos, naquela lá na Rua Grande tinha. Era um disco comum que tinha uma pérola no meio. Pra falar a verdade, isso não é reggae não, é uma música quase igual reggae, ela não é reggae assim, batida John Holt, né não. Mesma coisa do Trepidantes, ‘shake, lá lá lá lá, shake’, inventaram como reggae, mas não é reggae não, é quase como um reggae”.

Se o Melô tocava esparsamente em São Luís, não fazia parte do repertório da cantora, que faturava alto no papel de sex symbol do globo de luz. Andrea esteve no Brasil em 1978, no auge de seu sucesso, trazida pelo empresário Mario Buonfiglio para um show em São Paulo. Mario planejava promover artistas brasileiros que empresariava no exterior e firmou uma troca de favores com empresários estrangeiros, Andrea veio para cá enquanto a banda O Terço foi parar em Nova Iorque.

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“Se o Melô tocava esparsamente em São Luís, não fazia parte do repertório da cantora, que faturava alto no papel de sex symbol do globo de luz. Andrea esteve no Brasil em 1978, no auge de seu sucesso, trazida pelo empresário Mario Buonfiglio para um show em São Paulo”

Mas, pera, que já tô andando pros lados. Tem outro espelho, nele uma moça, vamos ver se é a verdadeira Andrea.

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True

Andrea Marie Truden nasceu em 1943, no Tennessee, cercada de caipiras. O pai morreu logo cedo e a garota tinha uma relação problemática com a mãe que, entre outras coisas, gravou alguns discos de polca. Andrea era uma menina prodígio educada numa escola de freiras, “quando passavam filmes no colégio e tinha cena de beijo, a freira botava o dedo na frente, pra que a gente não visse o beijo”, disse ao Rialto Report, um site que documenta o início da indústria pornográfica americana.

Andrea (abaixo, à direita) vence um concurso adolescente, Nashville Tennesean, 14 de maio de 1960.
Andrea (abaixo, à direita) vence um concurso adolescente, Nashville Tennesean, 14 de maio de 1960. (Rialto Report/Reprodução)

Ainda muito jovem estudou canto, piano e atuação, mas não gostava do teatro. Sonhava alto, queria ser pianista. No começo da adolescência tinha um programa de rádio e, aos 15 anos, apresentava um talk show na TV local. Andrea não estava pra brincadeira. De verdade. Entrou pra faculdade de música com bolsa integral, mas abandonou o curso ao casar com um estudante de direito. Foi embora com o marido. Anos mais tarde, disse em uma coletiva que o casamento era uma “instituição construída pelos homens para a exploração das mulheres”. O casório não durou muito, mas lá estava a moça do interior, chocada com a cidade grande como um Belchior: os hippies, o barulho, a quantidade de gente a desnortearam. Era o final dos anos 1960 e Andrea estava focada na carreira, show biz, onde desse. Trabalhou como estilista, modelo, cantora e fez pontas em comerciais e filmes.


“O casório não durou muito, mas lá estava a moça do interior, chocada com a cidade grande como um Belchior: os hippies, o barulho, a quantidade de gente a desnortearam. Era o final dos anos 1960 e Andrea estava focada na carreira, show biz, onde desse”

Morava com o namorado em Nova Iorque quando conheceu Harry Reems, ator pornô que estava se tornando famoso pelo hoje clássico Garganta Profunda. Os dois se davam muito bem e ele perguntou se ela não queria fazer um filme de sacanagem. Não levou muito pra que ela dissesse que sim. A indústria pornográfica americana estava ainda em seus primórdios e Andrea só queria faturar uma grana rápida pra continuar perseguindo seu sonho. Não acreditava que aquilo fosse dar em algum lugar.

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Poster de filme pornô estrelado por Andréa
Poster de filme pornô estrelado por Andréa (Reprodução/Arquivo)

Mas deu e deu gostoso. Após a estreia em The Head Nurse, de 1973, com Harry, dirigido por Leny Corman, a moça virou um dos nomes mais proeminentes do circuito pornô, choveram convites. Andrea atuou em mais de 50 de filmes e tem uma participação famosa em “Garganta Profunda 2”, a cabeça sempre no futuro, chegou a recusar o papel principal do hoje clássico “The Devil in Miss Jones”. Andrea sofria de um problema de sossego, não parava quieta. Pra ela a pornografia não era uma atuação e ela não via muito futuro naquilo. O dinheiro não ia parar nas mãos de quem estrelava os filmes e ela decidiu ir pra trás das câmeras, dirigindo a fita de saliênça “Once Over Nightly”, em 1976. Frustrada com a jornada e o pagamento oferecido aos profissionais da indústria pornográfica, na qual trabalhava numa “jornada de 16 a 18 horas por 100 dólares”, fundou uma guilda de atores pornôs, uma espécie de sindicato que pressionava os produtores por aumento e melhores condições, deu certo, “se alguém quiser chamar isso de prostituição, pode, mas deixa eu te dizer: as prostitutas ganham muito mais dinheiro que isso se trabalharem numa jornada dessas”, disse ao Rialto Report: “Você não acha que vai ficar muito famoso. Mas ficou, se espalhou feito um incêndio”. Ainda nos anos 1970, começou a achar que haveria uma fusão entre os filmes mainstream e os pornôs, com cada vez mais sacanagem no que se vendia nos cinemas. O que rolou. Fazer filme pornô “era fácil, a grana era legal e era muito divertido.”

Cartaz de Both Ways, com Andrea
Cartaz de Both Ways, com Andrea (Reprodução/Arquivo)

Andrea tinha muitos relacionamentos, a maioria fora da indústria pornográfica. Namorava muitos músicos e nessa entra no espelho um cara chamado Greg Diamond. Greg era compositor, produtor e chapado em tempo integral. Os dois tiveram um relacionamento explosivo e de muita criação. Gravaram muitas demos e tentaram com várias gravadoras lançar Andrea como cantora no começo da era Disco. Nessa época, a carreira de cantora parecia promissora. Ela conseguiu um contrato para cantar num restaurante chique do Empire State, frequentado por celebridades, produtores e gente da indústria.

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Entre a pornografia e o microfone, foi convidada para o lançamento de um filme na Jamaica, era uma viagem promocional. Na ilha, pegou uma gripe daquelas e ficou acamada. Foi atendida por um médico que tinha várias propriedades e a convidou para estrelar um comercial. Andrea passou um tempo na Jamaica e acumulou uma grana. Mas eram os anos 1970 e o primeiro-ministro jamaicano, Michael Manley, era assim com Fidel Castro. Guerra Fria. Embargo. Andrea não podia expatriar dinheiro da Jamaica pros Estados Unidos. E agora?


“Andrea passou um tempo na Jamaica e acumulou uma grana. Mas eram os anos 1970 e o primeiro-ministro jamaicano, Michael Manley, era assim com Fidel Castro. Guerra Fria. Embargo. Andrea não podia expatriar dinheiro da Jamaica pros Estados Unidos. E agora?”

Andrea chamou o namorado, contratou uma banda local e investiu o dinheiro em um disco. Greg tinha uma música ainda sem letra, uma discoteque, a garota escreveu uma letra sexy sobre sua vida na indústria pornográfica e “More, More, More” estava pronta, a despeito de a cantora achar que só tinha feito uma demo. Greg e seu irmão Godfrey (The Diamons Brothers) a fizeram “cantar tipo umas doze vezes, repetidamente, e assim conseguimos essa versão mais densa dela, esse vocal grande, exuberante, respirada e sexy”, disse Godfrey à Red Bull Musical Academy em 2014.

A primeira formação do Andrea True Connection, 1979
A primeira formação do Andrea True Connection, 1979 (arquivo/Reprodução)
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Não tardou pra que todos os holofotes estivessem voltados à cantora, que ascendeu loucamente nas pistas, mesmo sem gostar do gênero. Era outro golpe de sorte. Não era segredo que Andrea não era exatamente uma boa cantora, mas estava no lugar certo e na hora certa mais uma vez, desta vez protagonizando algo que só os anos 2000 veriam com frequência com nomes como Sasha Gray e Stoya: uma ex-atriz pornô que consegue sucesso em outro campo.

O segundo disco não tardaria. “White Witch” foi gravado no auge da carreira na Disco, mas Andrea já queria outra coisa, achava a Disco tola. Em 1978, logo após o lançamento da Bruxa Branca, veio ao Brasil. Só a Folha de São Paulo deu cinco matérias, em uma disse que Andrea estava “sempre presente em quase todas as seleções musicais das rádios paulistas e cariocas”. Nenhuma mencionava o Melô do Caranguejo, que, a essas alturas, já rolava na rádio Ribamar. A jornalista Izilda Alves esteve na coletiva de imprensa em São Paulo. Andrea, com um entourage, parecia fatigada: “estou cansada desse tipo de música rotulada de discoteque, quero mudar. No meu próximo LP, que estou gravando nos Estados Unidos, tem muito rock and roll, reggae, ritmos da Jamaica e punk-rock, mas o bom punk”. Andrea anunciou que a turnê brasileira seria “o fim de minha carreira em discotecas, que, aliás, se eu tivesse tempo nem frequentaria. Depois desta temporada começo outra fase: a do rock, que é a que eu sempre gostei”.

O casarão de Rose hall, cenário de uma lenda jamaicana, segundo a qual a Bruxa Branca – white witch – ainda assombra a mansão. Contam que ela foi uma mulher branca criada por uma babá que lhe ensinou voodoo e bruxaria. Teria se casado com o dono da fazenda Rose Hall, e o matado. Assim como seus outros dois maridos seguintes. Andrea conheceu a história na sua passagem pelo país e incorpora a personagem em seu segundo álbum.
O casarão de Rose hall, cenário de uma lenda jamaicana, segundo a qual a Bruxa Branca – white witch – ainda assombra a mansão. Contam que ela foi uma mulher branca criada por uma babá que lhe ensinou voodoo e bruxaria. Teria se casado com o dono da fazenda Rose Hall, e o matado. Assim como seus outros dois maridos seguintes. Andrea conheceu a história na sua passagem pelo país e incorpora a personagem em seu segundo álbum. (Rose Hall/Reprodução)

“White Witch”, o disco, já dá sinais dessa tensão. O lado A continha quatro músicas disco, todas produzidas por Michael Zager. Conversei com Zager, que me disse que usou a mesma técnica de cansar a voz de Andrea pra conseguir o efeito desejado, mas não conseguiu me dizer nada do lado B. “Só ouvi o produto final”, disse, seco, por e-mail. O Melô do Caranguejo soa tão estranho, a priori, mas parece fazer cada vez mais sentido quando se conhece a personalidade inquieta de Andrea True. O lado B do álbum traz mais um disco, produzido por Greg, “White Witch” e um cover de Lou Read. Parece que a Andrea Verdadeira estava nesse lado B.

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O Melô do Caranguejo foi a única canção produzida por ela mesma, composta em parceria com o misterioso Valmon C. Burke. Não só a produção é a de Andrea, a edição da canção também é dela, que parece ter aberto uma editora para garantir maior controle criativo. A passagem da disco pro rock e reggae já estava ali, mas o melô era lado B demais pra alguém lembrar.

O misterioso baixista Val Burke (último à direita) com sua banda Mother Night nos anos 70.
O misterioso baixista Val Burke (último à direita) com sua banda Mother Night nos anos 70. (Arquivo/Reprodução)

Conversei com Joey Barbosa, que acompanhou Andrea como guitarrista entre 1976 e 1978 e ele me disse que, “pra ser honesto eu também não sei te dizer muito sobre essa música. Eu não lembro de ter tocado essa música com ela”. Barbosa hoje vende vinis e toca em bandas countries. Estava na entourage que a acompanhou no Brasil: Quando ela terminou ‘White Witch’, sempre nos falava que queria escrever o próprio material e fazer as próprias músicas, e ela não queria mesmo fazer Disco, não era fã. Ela gostava muito de rock and roll. Quando escreveu essa música, acho que estava tentando dizer pra empresa que queria fazer algo que fosse dela e se afastar da Disco, mas eu acho que a gravadora queria simplesmente que ela continuasse, porque era muito popular. Eles queriam vendê-la com o mesmo som, não queriam que ela seguisse numa direção completamente diferente, porque os fãs dela eram fãs de disco, e cantar rock seria fazer o oposto. Então, acredito que deixaram ela fazer aquela música porque eles queriam, sei lá, agradá-la, deixando que ela fizesse uma música dela”.

A música estava lá e já rolava nas pistas do Maranhão. Todas as pessoas do mundo do reggae fora do Maranhão que entrevistei não se lembram da canção. Jornalistas renomados no campo e historiadores não conseguem associar o nome Andrea True ao reggae e as duas enciclopédias de que consultei dizem bulhufas sobre ela.

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Capa de War Machine, último disco de Andrea, gravado na Itália nos anos 80
Capa de War Machine, último disco de Andrea, gravado na Itália nos anos 80 (Andrea TRue Connection/Reprodução)

A cantora seguiu seu sonho. Gravou seu disco de rock, o terceiro, chamado “War Machine”, em 1980, mas perdeu a gravadora. O disco só teve uma única edição, na Itália. Logo após, fez uma cirurgia na garganta e ficou impedida de cantar, encerrando os jogos de luz em torno de si. Nos anos 1990 Andrea fez de um tudo, foi corretora de imóveis, astróloga, conselheira de programas de reabilitação. Virou uma pessoa reclusa, morando com uma colega, ex-atriz pornô dos anos 1970, em Woodstock. Nos últimos anos conseguiu judicialmente os royalties por suas músicas e teve algum conforto; via TV, lia livros sobre crimes reais e fumava uma xila no banheiro. Morreu em 2011, de problemas cardíacos.

Sem saber que, em 1990, Chico do Reggae ganhou um concurso.

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Olha o caranguejo!

O Espaço Aberto realizava anualmente a Festa da Recordação, na qual havia um concurso. Os inscritos eram convidados a tocar músicas, a que mais levantasse a massa papava os 500 reais do prêmio. Chico do Reggae sempre se inscrevia: “eu tava lá, só ouvindo os concorrentes, tocando só Roberto Carlos, eu, ‘vixe!, eu vou matar a pau todo mundo, essa aqui ninguém me tira!’. Quando chegou a minha vez eu botei ‘Shake it Up’, do Trepidantes, que é o Melô de Sheila e ‘White Witch’, Melô do Caranguejo. A outra eu não lembro. Quando eu botei a minha sequência, o povo gritava!” Chico levou seus 500 conto.

Quem estava nessa festa era o DJ Antônio José, que sacou que o caranguejo era gordo e resolveu reativar a canção. Reativação é quando uma música já enxovalhada ganha novas tintas e é reapresentada à massa, como aconteceu com o Melô de Valéria. Antônio José era o DJ do Espaço e disse ao amigo Maurício Capella, “esse aqui que vai ser o som do reggae agora”. A canção, contudo, ainda não tinha um nome. O disco de Andrea já tinha virado raridade. Chico, anos depois, vendeu uma cópia do vinil no Mercado Livre a peso de ouro: “Comprei por um chiclete e vendi por um carro!”

Ferreirinha, dono do Espaço Aberto, lembra da reativação: “Essa música chegou por acaso aqui. Eu não sei nem como essa música chegou. Eu sei que nesse tempo, nêgo costumava dizer que caranguejo já tinha era medo de regueiro, porque tudo nêgo fazia caranguejada. Aí no Espaço Aberto a gente fez uma caranguejada uma vez e essa música Antônio José botou, que tinha um cara tipo doido, e Antônio José gostava dessa música e olhou presse cara: ‘Melô do Caranguejo’, eu sempre me lembro que foi lançada por causa disso. Esse cara eu nunca mais vi. Ele dançava todo doido!”

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Daí a música virou o clássico que é. Parece que o projeto artístico de Andrea True só se realizou mesmo no Maranhão, sem que seus fãs lhe conhecessem o nome e a história da Bruxa Branca passasse longe, o que me leva a uma última questão.

Tendemos a pensar que os nomes dos melôs carregam uma certa obviedade, dada pela proximidade do som em inglês com alguma coisa em português, como no caso do Melô do Caranguejo.


“Tendemos a pensar que os nomes dos melôs carregam uma certa obviedade, dada pela proximidade do som em inglês com alguma coisa em português, como no caso do Melô do Caranguejo”

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A questão aqui é que a associação fonética não é simplesmente fonética. Tá bem que caranguejo parece encaixar feito luva no refrão da Andrea True, mas poderia facilmente ser “Melô do Primeiro Beijo” ou “Melô do Cargueiro”, se o batismo tivesse acontecido em outro contexto. Acontece que o caranguejo é parte da Ilha, como é parte da vida do regueiro. A “caranguejada totalmente liberada” anunciada em centenas de festas pelas rádios ajuda a associar o caranguejo como uma parte do universo do reggae.

A associação fonética também é uma associação cultural, vem com um entorno. A associação de Ferreirinha e Antônio José ao cara dançando feito maluco aos movimentos de um caranguejo só rolou porque o caranguejo nos vem como uma metáfora fácil. Outros melôs batizados por associação fonética confirmam essa ideia: Melô de Chiquitita foi criado quando a novela estava nas pontas das nossas línguas, assim como os melôs de Itamaraty e Antônio José foram encaixes a partir das necessidades da radiola e do DJ. Outro contexto no qual não existisse a Itamaraty não se daria ao trabalho de ler “Bargie” e entender o nome de uma radiola.

Caranguejo podia ter medo de regueiro, mas regueiro algum pode dizer que não curte uma caranguejada. De preferência, ao som do melô do caranguejo.

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