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Não há vagas

A diversidade tornou-se a palavra da vez na hora das contrações, mas ela tem servido de alguma coisa? Uma campanha da Firma Preta tenta responder a questão

por Artur Tavares Atualizado em 31 out 2022, 16h23 - Publicado em 4 jul 2022 08h59
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(arte/Redação)

lhe atentamente para o seu local de trabalho. Quantos negros ocupam cargos similares aos seu? A chefia da sua empresa é preta? Provavelmente não. De acordo com dados do IGBE, apenas 3% de cargos de liderança nas firmas brasileiras são ocupadas por negros, um número absurdamente baixo para um país com quase 60% de negros, o segundo maior contingente em todo o planeta.

Falamos muito sobre a necessidade de mudanças em nosso cotidiano, e é verdade que as empresas têm adotado cada vez mais um discurso em prol da diversidade. Se essa é a palavrinha-chave pelos departamentos de RH em todo o país, porque não há de fato mudanças efetivas?

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Foi olhando para esse cenário que a startup Firma Preta acaba de inaugurar a campanha #FeedBlack. Especializada no que eles chamam de “empoderamento pessoal”, a empresa fundada por Emílio Moreno e Juliana Gonçalves quer investigar onde estão os gargalos que impedem o crescimento profissional de negros no mercado de trabalho. A ação, que tem sido amplamente divulgada nas redes sociais, tem como objetivo ouvir pessoas pretas que passaram por situações adversas em seus locais de trabalho, como a falta de um ambiente positivo de escuta ou a perpetuação do racismo por parte de colegas brancos.

“O objetivo não é fazer uma caça às bruxas, mas achamos importante que os empregadores possam ouvir também”, conta Emílio, que nos últimos dois anos tem ajudado recrutadores a amplificar o discurso anti racista em suas companhias. “Achamos importante não apenas abrir vagas, mas preparar a empresa para receber essas pessoas. Tem uma estrutura pronta pra isso, ou a pessoa será só um enfeite, um bibelô?” Confira nosso papo:

A diversidade tornou-se o conceito da vez nos últimos anos. Mesmo com o país entrando em uma onda conservadora, víamos cada vez mais o discurso da diversidade alcançar todos os campos da nossa sociedade. Vocês estão com essa iniciativa do #FeedBlack que busca escancarar as armadilhas dessa diversidade dentro do campo neoliberal. Como surgiu a ideia da campanha?
Lançamos a campanha muito com essa perspectiva de que diversidade virou essa palavrinha da moda, que todo mundo acha super descolado tratar, mas que não vemos ações de verdade nas organizações. Vemos, sim, muita boa vontade, mas sabemos que boa vontade não é suficiente. Então, o #FeedBlack é uma campanha para ouvirmos de fato as pessoas, que elas possam reclamar dessa “diversidade”.

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O objetivo não é fazer uma caça às bruxas, mas achamos importante que os empregadores possam ouvir também, porque geralmente o que acontece é um CEO ler uma reportagem, ficar muito impactado, e achar que está inventando a roda trazendo diversidade. Mas, não ouve uma pessoa preta que já está na empresa dele. Muitas vezes, nem pessoas pretas têm para ouvir.

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Então, achamos importante não apenas abrir vagas, mas preparar a empresa para receber essas pessoas. Tem uma estrutura pronta pra isso, ou a pessoa será só um enfeite, um bibelô? Porque muitas vezes não há um lugar de escuta, ou os colegas reproduzem racismo e ninguém faz nada, ou esses profissionais são colocados em posições júnior, e nunca na liderança. É hora de ouvir as pessoas e mover essas estruturas.

Aqui na Elástica, muitos dos nossos vêm falando sobre como encaixar as pessoas em rótulos da diversidade é apenas uma maneira de manter certos grupos, como negros, indígenas e LGBTQIA+, dentro de campos minoritários, o que acaba perpetuando a discriminação. Como fazer para inverter o discurso de diversidade e torná-lo em igualdade se ainda somos um dos países mais preconceituosos do planeta?
Se você procura alguém para falar sobre racismo no dia 20 de novembro [o Dia da Consciência Negra], não somos a empresa para falar sobre isso. Se você olha para a diversidade e só chama os negros para falar sobre racismo, da situação da desigualdade, e na hora que vou fazer um evento chamo sempre aquele amigo branco, o colega que está mais fácil, você está reproduzindo a estrutura. Precisamos enxergar essas pessoas pelo que elas estão aí, sejam engenheiros, médicos, cientistas, mulheres negras produzindo muitas coisas… As empresas precisam ver isso, e não somente lembrar no dia 20 de novembro ou no dia 13 de maio [Dia da Abolição]. É um absurdo que até hoje aconteça assim. Portanto, as pessoas estão cansadas de falar. Tenho vários amigos pretos que não vão para eventos se é para falar de racismo. Então, acho que esse é um dos primeiros passos que os brancos precisam tomar.

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“Se você olha para a diversidade e só chama os negros para falar sobre racismo, da situação da desigualdade, e na hora que vou fazer um evento chamo sempre aquele amigo branco, o colega que está mais fácil, você está reproduzindo a estrutura”

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(antonio dillard/Pexels)

Há vinte anos, muitos dos críticos das cotas raciais têm exatamente esse discurso de que reservar espaços para negros nas universidades não resolve, não capacita ninguém que teve uma má educação básica, e que perpetua igualmente o racismo. Como não confundir as críticas dessas pessoas com as críticas feitas por quem está vivendo hoje problemas como os que vocês querem escancarar no #FeedBlack?
São duas coisas. Enxergar que é preciso ouvir os negros sobre os mais diversos temas, embora continuemos falando sobre racismo em um país como o nosso, e entender as identidades dessas pessoas. Quanto às críticas em relação às cotas, isso é uma falácia, porque hoje as universidades estão mais diversas e plurais exatamente por elas, por conta de como as cotas produziram uma realidade que não existia.

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Quando falamos da inserção de negros e indígenas no mercado de trabalho, principalmente quando vemos essas vagas não darem certo, muitas vezes o racismo opera culpando essas pessoas por baixa qualificação, por reatividade social e uma série de outros fatores. Assim como sempre em nossa sociedade, a branquitude se exime da culpa. Há um problema de capacitação e reatividade nos brancos? Como resolvemos isso?
Quem precisa, deve e está atrasado em resolver a questão do racismo são os brancos. Estamos cansados de falar sobre um problema que quem criou foram os brancos. Existe essa tentativa de terceirizar a culpa, e tem tudo a ver com a branquitude. Um dia desses, ouvi de um executivo que na missão da empresa dele não está escrito que ela precisa resolver a questão da diversidade. Ele já está tirando o dele da reta dizendo que não é sua culpa. O branco precisa entender que não vamos abrir mão desse movimento que já estamos fazendo, não tem volta. Se tem alguém que ainda não entendeu, vai ter um pouco mais de trabalho.

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Além de que isso é uma mentira, porque há negros qualificados nas mais diversas áreas. Mas, o que as empresas fazem, a branquitude faz com muita habilidade, é desenhar uma vaga para um profissional negro com skills que ele não vai encontrar, como falar três idiomas. Empresas como o Google já tiraram o inglês de seus processos de trainee e de estágio, porque no Brasil apenas 3% da população fala inglês fluentemente. A branquitude tem que entender que precisa abrir mão desse privilégio.

É óbvio que ainda é preciso haver vagas afirmativas como lugar de marcação, mas acho que o branco que não fala bem inglês se aplica a uma vaga que pede inglês, mesmo sabendo que não falará fluentemente, enquanto o negro não faz isso porque enxerga aquilo como uma trava.

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(uhammadtaha ibrahim ma'aji/Pexels)

As ações afirmativas, que praticamente ainda se resumem às cotas no Brasil. Como ir além da universidade e continuar capacitando profissionais já no mercado de trabalho?
Estamos vendo essa intervenção vindo do capital. Os investidores já dizem claramente da necessidade de empresas se tornarem mais diversas e responsáveis socioambientalmente, senão tiram o dinheiro das empresas. Há esse movimento global porque já se entendeu que as políticas afirmativas não são só reparação, ou justiça social. São, além de tudo, para trazer um outro olhar para essa homogeneidade.

“Ouvi de um executivo que na missão da empresa dele não está escrito que ela precisa resolver a questão da diversidade. Ele já está tirando o dele da reta dizendo que não é sua culpa. O branco precisa entender que não vamos abrir mão desse movimento que já estamos fazendo, não tem volta”

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As universidades foram sucateadas, o ensino básico brasileiro nunca foi bom, o desemprego está cada vez maior. O quanto estacionamos – ou retrocedemos – nas ações afirmativas? Como vamos recuperar esse tempo perdido?
Do ponto de vista de quem decide, estamos atrasados pelo menos uns 30 anos. Porque ainda ouvimos de alguns empresários e tomadores de decisão que a diversidade é muito difícil. Mas, em compensação, temos uma garotada muito atuante e inquieta. Estão fazendo seus corres, criando startups e seus movimentos.

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A receita anual das periferias brasileiras é de R$ 119,8 bilhões. Olhando para esse movimento que você citou, há uma chance de haver dois países distintos economicamente dentro do Brasil, um branco e outro preto?
Acho que nem corremos esse risco porque o black money já existe, porque essas comunidades já se viram, sobretudo agora depois da pandemia e com a escalada do desemprego no país. Os pretos sempre estiveram nos corres. Eu diria que esse descolamento da realidade é muito mais um entendimento dos mais ricos sobre o que é o Brasil real do que qualquer outra coisa. Acho que seria melhor para os negros que esse empreendedorismo não fosse por necessidade, porque isso é muito ruim. Você tem que se virar, não se formaliza, não entra na previdência. Porque se um branco chega hoje em um banco público pegar um empréstimo, ele tem mais chances do que um negro. Essa desigualdade continua empurrando para a informalidade, e é um reflexo do racismo estrutural.

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(lara jameson/Pexels)
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Vemos uma série de iniciativas como a Firma Preta ajudando grupos minoritários a se inserirem no mercado de trabalho, mas ainda restringimos a figura dos profissionais negros ao setor de diversidade das empresas, ouvindo o que eles têm a dizer apenas sobre esse tema. Vocês acreditam que ainda estamos longe demais de deixarmos os negros serem nossos mentores?
Tem muito disso, sim. Para mim, soa muito estranho ouvir que um branco não consegue ouvir um negro em um país em que quase 60% da população é negra. Isso é um entendimento da sua bolha. O branco que está interessado em falar sobre diversidade tem que sair da sua bolha. Não é em um escritório na Faria Lima que ele vai entender, não é vendo um negro fazendo a limpeza do escritório que ele pode achar que convive com negros. O primeiro exercício é esse, ouvir o que essas pessoas têm a falar. O branco precisa abrir mão do seu privilégio. Se ele está concorrendo a uma vaga com outro executivo, se ele não abrir mão daquela vaga, que ele já larga na frente, não está interessado em diversidade, do mesmo jeito que nós, homens, precisamos abrir mão do privilégio em detrimento das mulheres, e isso é uma coisa pra ontem. Se um executivo junta seu board e não tem um negro para falar sobre diversidae, essa conversa não vai chegar a lugar nenhum.

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