Na onda dos cristais, signos e energias, conversamos com a Ju, do perfil Espiritualidade Mercantil, que critica o crescimento do papo holístico neoliberal
por Alexandre MakhloufAtualizado em 18 nov 2021, 12h53 - Publicado em
17 nov 2021
23h32
ena 1: você chega em algum lugar e algo parece errado. A intuição bate e você decide ir embora. Na vez seguinte que precisa frequentar aquele lugar, leva uma pedrinha da sorte com você no fundo da bolsa e tampa o umbigo com um pouco de algodão. Cena 2: na hora de puxar um novo assunto no primeiro encontro com aquele cara gatinho do aplicativo, você pergunta o signo. Gêmeos com ascendente em capricórnio. A nuca até arrepia e você, munido de seu mapa astral muito bem memorizado e uma série de traumas com outros boys lixo, já descarta o possível romance. Cena 3: depois de semanas dormindo sem conseguir efetivamente descansar durante a noite, uma propaganda no Instagram te apresenta a possível solução para equilibrar de vez seu corpo e te deixar mais centrado: uma garrafa d’água com um enorme quartzo rosa no interior, que tem propriedades curativas e vai fazer essa renovação de dentro para fora. Você fica balançado, mas o preço salgado te faz pensar um pouco mais e voltar para o scroll dos stories de pessoas que você nem sabe ao certo porque segue.
Se qualquer uma das três cenas – ou todas elas – te parece comum, seja bem-vindo à “nova era” que vivemos hoje. Pelo menos é assim, “por falta de palavra melhor”, que a Ju chama todo esse movimento de espiritualidade neoliberal e, por que não, extremamente capitalista. Ju, que prefere não se identificar com seu nome completo e nem com sua foto, é a criadora do perfil Espiritualidade Mercantil, onde já acumula mais de 45 mil seguidores. Lá, ela critica diversas práticas terapêuticas – como thetahealing, constelação familiar, barras de access e cristais, entre outras – com propriedade. Não só porque seus argumentos mostram a forte veia neoliberal e, por vezes, mal intencionada de algumas delas (como explicar em constelação familiar que uma criança foi abusada porque tinha “contas a serem acertadas sobre uma vida passada”), mas também por usar sua própria experiência como “ex-mística” para confrontar essas práticas.
Durante algumas horas, conversei com a Ju sobre sua trajetória, o que a motivou criar o Espiritualidade Mercantil, suas ressalvas com a nova era e como identificar se sua fé está sendo usada como moeda de troca ou combustível para um movimento que, na verdade, não tem as boas energias como principal objetivo. Mas é preciso fazer algumas ressalvas antes de mergulhar nesse bate-papo. Assim como muitas dessas práticas, essa conversa não é uma resposta cravada ou comprovada por uma ciência exata – ela é uma reflexão sobre como a mercantilização da espiritualidade vem ganhando força na nossa sociedade. Em segundo lugar, e talvez mais importante, é uma conversa que não tem como objetivo diminuir a fé ou a crença de ninguém. É apenas uma visão mais cética, baseada em um relato pessoal, de que nem tudo que é prometido dentro do universo das terapias holísticas pode ser exatamente aquilo que se propõe.
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Quero começar falando da sua bio do Instagram: “Ex-mística, anticapitalista e sarcástica contra a capitalização da fé no movimento novaerista”. Conta pra gente como foi seu processo de transformação em jovem mística? No Brasil, temos uma mistura muito grande, de ter uma família católica que vai no centro espírita tomar passe, faz uma simpatia, vai no terreiro de vez em quando. Cresci nesse ambiente, que tinha um pouco de tudo. Credito o meu misticismo a isso. Tive uma depressão muito forte no começo dos 20 anos, tentei suicídio algumas vezes nessa idade e acho que não tratei do jeito que deveria ter tratado, continuei minha vida sem elaborar tudo que tinha acontecido. Teve um período que eu achava que estava tudo bem, mas, na verdade, estava varrendo tudo pra baixo do tapete. Penso que todo mundo, lá pelos 26 ou 27 anos, tem uma necessidade de autodescoberta: pensar quem eu sou, qual meu propósito, se estou na carreira certa… Eu sentia esse vazio e queria preencher isso de alguma maneira, mas não sabia como. Comecei a ir atrás dessas respostas e, em paralelo a isso, como consequência da depressão, fiquei com muita insônia, o que durou por muitos anos. Comecei a procurar tratamentos alternativos para tratar dessa insônia e, de quebra, para preencher esse vazio. Acho que comecei fazendo mapa astral, na época achei que foi muito bom, que daria uma direção pra minha vida, e acreditava em certas previsões que tinham sido feitas.
“No Brasil, temos uma mistura muito grande, de ter uma família católica que vai no centro espírita tomar passe, faz uma simpatia, vai no terreiro de vez em quando. Cresci nesse ambiente, que tinha um pouco de tudo. Credito o meu misticismo a isso”
Mas aquilo não foi suficiente. Continuei com insônia, ainda que tenha feito alguns tratamentos, como massagem ayurvédica, e isso não deu resultado. Nessa época, eu ganhava muito mal, tinha que deixar de fazer coisas pra poder pagar isso. Juntava dinheiro e ainda assim não conseguia fazer a quantidade de sessões que eu queria. Foi quando me falaram de um acupunturista aqui em São Paulo que, além de tratar o corpo, também tratava questões energéticas de desatar a vida, de fazer acontecer. Até aí, acho que eu estava nas drogas leves (risos). Esse acupunturista me convidou pra tomar ayahuasca, num grupo mega elitista, que tem até pessoas famosas. Hoje, vejo que tem um preço muito diferente do que os outros rituais de neoxamanismo – sem fazer o juízo de valor se é certo pagar ou não. Aquilo era uma gourmetização da ayahuasca. Fui a primeira vez e foi mágico, sensacional. Acreditei que tinha me conectado com o universo, porque a experiência ali mexe com todos os seus sentidos, suas emoções, te faz lembrar de coisas. Não entendo muito de neurociência, mas mesmo quando você pensa numa coisa ruim, os neurotransmissores de prazer estão lá em cima, então você acha que está curando isso. Essa era a sensação que eu tinha. Ele falava que uma sessão de ayahuasca pode valer por 20 anos de terapia. A partir daí, foi ladeira abaixo.
Por quê? Eu só andava com as pessoas desse grupo, virei madrinha de ayahuasca – até porque não tinha grana pra pagar todas as sessões, então trabalhava pra poder tomar de graça. E, quando você toma e não está feliz com a sua vida, você começa a pensar que seu propósito está ali. Dentro das sessões, sempre tem um roteiro: você chega no lugar, os dirigentes falam por 1 ou 2 horas, e aí você toma a ayahuasca, com música tocando o tempo inteiro. É uma lavagem cerebral. Tudo que foi falado naquela uma hora e meia acaba sendo internalizado porque você está sob o efeito.
Eu ouvia o que eu fico postando. “Você tem que aumentar sua energia”, “tem que estar no fluxo da abundância”, “se você perdoar sua criança, você vai ser mais feliz”, “você não vai pra frente porque você culpa seus pais”. Agora pensa tudo isso sendo que eu tinha uma depressão não tratada. Eu achava que todo mundo tinha que fazer aquilo, só que o tempo foi passando, eu acreditava naquilo e nada ia pra frente. Comecei a fazer vários cursos de formação de terapeuta holística: sou mestra em reiki, fiz curso de cristais, tenho dois anos de dirigência espiritual – um curso que misturava baralho cigano, espada de Arcanjo Miguel, uma bagunça – e minha cabeça a mil nisso tudo.
Você se arrepende? Não sou 100% crítica a esse período da minha vida. Eu tinha ideações suicidas e acho que aquilo me segurou. Mas cansei disso. Dentro desses cursos de formação, inclusive de thetahealing – que eu acho o pior de todos –, eu nunca me senti preparada pra atender ninguém. Por mais que você tenha críticas, o que pode acontecer enquanto você estuda e aprende, eu sempre pensava: e se chegar uma pessoa igual eu, com as mesmas queixas e questionamentos? Tudo que um terapeuta fala num momento de vulnerabilidade é verdade, porque você quer ouvir, então existe uma puta responsabilidade e eu não me sentia apta para começar a atender.
“Tudo que um terapeuta fala num momento de vulnerabilidade é verdade, porque você quer ouvir, então existe uma puta responsabilidade. Por isso nunca me senti apta para começar a atender”
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Acho que aí então começa o processo de transformação em “ex-mística”, certo? Sim. Comecei a questionar minha capacidade para ser terapeuta e por que minha mediunidade não era tão aflorada. Muitas vezes, as visões que uma pessoa tem sobre você nesses momentos são só preconceitos dela, conceitos do que uma pessoa como você, pela observação dela, precisa ou deve ouvir. Nessa mesma época, comecei a namorar um cara muito legal e comecei a prestar atenção nele, que era um cara calmo, equilibrado, inteligente, que conhecia muita coisa. Continuei indo na ayahuasca, mas bem pouco. Paralelamente, comecei a perceber que eu precisava trabalhar também o que chamava de terceira dimensão, que seria o mundo palpável: o que a gente vive no dia a dia, e aí me filiei a um partido político. Toda a minha busca era para que o mundo fosse um lugar melhor. Dentro do partido, tínhamos as reuniões de núcleo (só entre os filiados, sem os políticos), em que a gente leva os assuntos, debate e tenta achar a solução, ou pelo menos entender aquilo, e isso foi um outro ponto de virada na minha vida. Entendi que aquilo era a prática de tudo que eu tinha estudado até então. Todo mundo ali queria fazer o mundo melhor de um jeito palpável. Eu achava que as pessoas do partido deveriam estudar o lado metafísico também, tratar o corpo físico e o etérico. Se todo mundo fizesse isso, seria o mundo perfeito. Esse momento também introduziu na minha vida leituras que não fossem místicas. Sociologia, antropologia.. Até que li um livro que mexeu muito comigo, Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder, de Byung Chul-Han, que me mostrou que o mundo místico manipula a gente através das nossas emoções. Tudo que a gente tenta fazer dentro disso é pra aumentar performance, tentando ser um super humano: ser rica, ser bonita, ser bem sucedida, fazer o que você gosta.
Como você começou a perceber essa capitalização em cima da fé e do misticismo? Eu considero esse livro uma das principais mudanças, porque fiquei muito crítica depois dessa leitura, passei a ter pé atrás com tudo. Eu começava a lembrar do que eu já tinha feito e ficava “meu deus, eu fiz várias lavagens cerebrais, estão me transformando em um peão do neoliberalismo. Tudo que eu fiz até hoje foi pra servir o neoliberalismo e eu achava que estava evoluindo meu espírito”. Nessa altura, aconteceu outra coisa que também contribuiu muito para abrir meus olhos: tenho um gato que eu amo muito e ele ficou muito doente, quase morreu. Passei noites dormindo com ele no sofá, chorava muito, acho que nunca senti tanta tristeza, nem na época em que cogitei me suicidar. Comecei a questionar muita coisa em relação à morte, tive um contato com a morte que eu nunca tinha parado pra pensar, e aí tive um insight de que não dá pra saber. Não dá pra saber nada: se vai ter reencarnação, se vou vir ao lado dessa pessoa, se existe um pós, se vou pro céu ou pro inferno. O que a gente sabe é que a gente tem o agora. Entendi que o momento da passagem, da morte, tem que ser um momento em que você pensa que valeu a pena. Foi desse momento em diante que eu coloquei pra mim: eu não sei nada. Não posso ter fé que vai ter um depois porque eu não sei. Hoje, me considero agnóstica, porque acho também que ser ateia demanda uma certeza que eu não tenho. Uma coisa que acho muito bonita nesse meu caminho de ex-mística é aprender a conviver com um buraco e ver beleza nele. Tenho um vazio que nunca vai ser preenchido e acho que viver em paz com esse vazio é muito bonito.
“Hoje, me considero agnóstica, porque acho também que ser ateia demanda uma certeza que eu não tenho. Uma coisa que acho muito bonita nesse meu caminho de ex-mística é aprender a conviver com um buraco e ver beleza nele”
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Você falou no seu perfil sobre como a moda vem se apropriando do discurso esotérico e transformando isso em produto. Quais são os principais problemas dessa mercantilização da espiritualidade? Acho que o principal é a despolitização, porque todo mundo quer mudança, mas através desse consumo as pessoas passam a entender que vão mudar a própria vida. Esse consumo é individual, você não trabalha a coletividade. Outro problema desse pensamento “novaerista” – chamo assim por falta de nome melhor – é a separação entre você e o outro. Colocamos o outro tão distante e acreditamos que o outro tem que evoluir sozinho, procurar a salvação sozinho. Falam muito que todo mundo sabia o que ia acontecer quando reencarnou, que foi uma escolha da alma, e acho que isso justifica muita bosta, quase uma sociedade de castas. Que você nasceu “para isso”, que você veio pra pagar os pecados da vida passada. Como que eu vou ter esse crédito com o divino se eu nem sei o que eu tenho que trabalhar? O principal problema pra mim é esse. E acho que mistura muito com pseudociência dentro desse mercado, principalmente dentro das terapias que cobram, que inventam produtos para serem vendidos e, para mim, é tudo uma grande mentira. Acho que é uma estratégia que se aproveita de pessoas que não têm fé o suficiente e pensam “vou pegar um cristal, meditar e melhorar”. Precisam de uma explicação da física quântica para validar aquilo, sabe? Digo isso porque estudei a fórmula da molécula do cristal quando fiz um desses cursos para justificar por que os cristais funcionam como terapia holística. É uma mistura que vem dessa falta de fé. Eu imagino que, se você acredita, se a sua fé, não precisaria de tantas explicações.
O thetahealing, por exemplo, é uma técnica meditativa e terapêutica que ensina a acessar um estado de consciência por meio das ondas cerebrais theta — ondas com ritmo mais lento em comparação a outras. Essas ondas realmente existem, e acho que a grande sacada desse mercado está nisso. A primeira coisa que você ouve ali é verdade, mas todos os desdobramentos dela não necessariamente são. Porque chega uma hora que esse misticismo se torna igual à religião. Depois de um certo ponto, as explicações acabam e você tem que acreditar. Depende exclusivamente da sua fé, porque se você não acreditar, não vai dar certo. E aí a culpa é sua, não do negócio que é furado.
A astrologia também se tornou um mercado enorme, inspirando marcas e movendo muita grana com cursos, atendimentos e formações profissionais. Por que tanta gente tem procurado apoio na astrologia atualmente – e na espiritualidade como um todo? Não tenho tanto problema com a astrologia porque ela não se coloca como ciência. Tenho problemas com alguns astrólogos que se colocam como autoridade e fazem previsões fechadas. Também não sei dizer ao certo quando isso começou, falando especificamente do Brasil. Talvez depois da década de 1960, com festivais, Woodstock etc. Sei que muitos astrólogos das antigas eram esses hippies que iam lá pra fora, tinham contato com os estudos, gostavam e traziam para cá. Acho que é um movimento que começa elitizado por conta disso. A classe trabalhadora, pessoas que têm menos grana, em geral tenta se espelhar em quem tem mais. Hoje, presto mais atenção na mídia e vejo que jornalismo tem muita responsabilidade quando essas coisas se espalham. Principalmente revistas e sites de comportamento, que precisam estar sempre por dentro do último assunto e fazem matérias sobre os benefícios dos cristais, como se aquilo fosse verdade. Aconteceu isso com os yoni eggs – pedras em formato de ovo que podem ser feitas de jade, quartzo ou obsidiana, e são introduzidas na vagina para melhorar a saúde íntima e sexual. Imagina o tanto de doenças que isso não pode proporcionar na saúde íntima da mulher se não forem corretamente manipulados? Tenho a sensação de que quem escreve esses textos, muitas vezes, não está preocupado se aquilo é verdade ou não, porque precisa bater uma meta de audiência, entregar aquele conteúdo para não ficar de fora. Mas quem é leigo lê e acha que aquilo está sendo endossado, que foi comprovado e é verdade.
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Junto com esse crescimento, temos também a figura do guru, problemática em tantas níveis… por que a gente precisa de um líder espiritual para capitanear essa busca, que é uma coisa muito mais pessoal/interna? Osho, João de Deus, Chico Xavier – ele não se colocava nesse papel, mas talvez se encaixe aqui também –, Sri Prem Baba… Se paramos para pensar nos gurus, percebemos que 99% são homens. Ao meu ver, isso vem um pouco da nossa mentalidade como sociedade paternalista. Não entendo muito de psicanálise, mas sei o suficiente sobre a nossa relação com a figura do pai, que precisamos dessa figura de autoridade. São pessoas que, no geral, se vendem muito bem, tem muitas técnicas ali de sedução, é muito difícil não cair no papo se você está em um momento de vulnerabilidade. Ainda mais se a pessoa já tiver um certo status. Qualquer atenção que aquele guru te dá, você se sente abençoado. Tem também essa coisa de rodear o líder – pelo menos na tinha no lugar em que eu tomava ayahuasca. Parece que a gente quer pegar um pouco dessa luz de quem está ali no comando, quase uma síndrome de Jesus Cristo. Acho que é uma explicação difícil e bastante subjetiva que eu definiria como uma soma: o tom professoral, a corte em volta dele. Sobre esse tema, mais do que eu me alongar aqui, sugiro uma série documental chamada Heaven’s Gate, sobre uma seita que existiu nos Estados Unidos em que todos os integrantes se mataram. Diferente das outras séries, que só criticam, essa explica quais eram as crenças deles, como tudo começou, e você vê que o negócio começa com alguém falando que tem a verdade e isso preenche o vazio em outras pessoas.
“Acho que a grande sacada desse mercado está nisso. A primeira coisa que você ouve ali é verdade, mas todos os desdobramentos dela não necessariamente são. Porque chega uma hora que esse misticismo se torna igual à religião. Depois de um certo ponto, as explicações acabam e você tem que acreditar”
Existe algum “sinal vermelho” ou alguma característica para identificar quando um discurso espiritual está sendo mercantilizado? Não dá para falar de tudo, mas acho que tem algumas coisas que dá pra observar. Não é regra, mas por exemplo, quando você vê um cara sempre rodeado de mulheres, a chance de ter algo errado é grande… São coisas que estão muito nas entrelinhas, sabe? Eu, hoje, fico com pé atrás com todo mundo. Principalmente com quem fala que sabe alguma coisa sobre o além. Acho que outro indicativo é quando a pessoa cria um método e vende esse método, às vezes é até uma marca registrada. Acho que esse é um sinal bem claro. Tipo barras de access [prática pseudomédica que consiste na manipulação de uma série de pontos localizados no crânio] ou o próprio thetahealing – mas este foi criado por uma mulher, é bom lembrar. É uma história muito semelhante à de Moisés: a pessoa recebeu um sinal divino, mentalizou desenhos e linguagens, criou um método e saiu aplicando. Aquilo é verdade porque o universo mostrou para essa pessoa que é verdade. Não é um pouco suspeito?
Falando em armadilhas, quais são os exemplos mais absurdos de charlatanismo em cima disso? Eu já ouvi falar em floral de ayahuasca, meditação em cima de cristais por R$ 3 mil, mandala da prosperidade… Acho que a garrafa d’água com cristal dentro é o grande representante, até porque é muito caro e com uma rápida pesquisa já dá pra ver que não é tudo isso. Também tem uma marca de água que chama Águas de Mikael, que são garrafinhas de água bem pequenas, energizadas, colocadas em uma frequência específica. São águas “alcalinas, re-estruturadas e re-equilibradas na frequência de Micael (aquele que é como Deus). Sua formulação contém as informações de plantas e flores na sua máxima expressão, construindo canais de comunicação e acessos reais à vibrações evolutivas”. Existem combos com diversos objetivos: prosperidade, amor, verdade, luz, abundância. Você compra 21 águas e cada pacote custa cerca R$ 600. Deve ter 200ml ou menos cada água, e tem que tomar uma por dia quando acorda.
Além disso, temos todos os exemplos de retiros e vivências que são caríssimos. Essa coisa do sagrado feminino, de viajar para a Chapada dos Veadeiros ou para o México, em que você paga R$ 10 mil ou R$ 15 mil para se reconectar. Quer dizer então que, se eu não tiver dinheiro, estou menos conectada com o universo? Isso me lembra uma frase do Leandro Karnal em que ele diz: “você pode aprender inglês e isso depende do seu esforço. Pode aprender esquiando em Aspen ou indo um fim de semana na biblioteca da cidade”. Acho que precisa ter muita boa vontade para acreditar nisso, porque sabemos que existe todo um capital social em fazer esses retiros todos.
Durante a pandemia, muitas pessoas se apoiaram em um discurso de “limpeza espiritual”, como se estivéssemos passando por essa tragédia porque “precisamos/merecemos”. Por que uma afirmação como essa é tão irresponsável e qual o impacto que ela pode ter nas pessoas? Acho que o conformismo é muito perigoso, é uma técnica de dominação muito forte e muito eficaz. É perigoso em tantos níveis, mas pensando especificamente nessa história da pandemia, aproxima as pessoas do negacionismo – se é uma limpeza espiritual, não tem muito o que fazer, a espiritualidade vai te levar se você não estiver preparado e você vai voltar para o plano astral pra evoluir mais. Exploração ambiental tem muito a ver com isso também. O planeta está se destruindo, não existe explicação mística pra isso, é puro capitalismo. Outro problema é a despolitização, que já falamos aqui, e a invalidação da dor do outro. Se você perde alguém querido e alguém te fala que a pessoa “tinha que ir”, que “fulano não estava preparado”, o quão insensível é isso?
“Acho que o conformismo é muito perigoso, é uma técnica de dominação muito forte e muito eficaz e aproxima as pessoas do negacionismo – se é uma limpeza espiritual, não tem muito o que fazer, a espiritualidade vai te levar se você não estiver preparado e você vai voltar para o plano astral pra evoluir mais”
Junto com isso, vimos crescer recentemente um “negacionismo de esquerda”, que está muito vinculado aos discursos espiritualizados – energias, cristais, alimentação ayurvédica pra combater covid-19… O quanto essa espiritualidade mercantil contribui para essa resistência ao pensamento científico? Contribui muito. A gente fala muito de “esquerda cirandeira” e “direita namastê cloroquiner”. Acredito que a esquerda até se aproxime desse tipo de coisa numa boa intenção, eu não duvido. Acho que é uma vontade de se conectar com povos originários, culturas que não sejam europeias, de querer vivenciar estar ali, mas não do jeito correto. Se você me perguntar, também não sei dizer qual o caminho 100% correto, mas acho que a nova era no geral tem essa característica de isolar uma prática fora do contexto. Gosto muito da yoga como exercício físico, mas você não pode se considerar um iogue se você não vai ler os vedas, não vai entender de onde aquilo veio. O problema é pegar uma parte e se apropriar dela como se aquilo fosse o todo.