
ra março, e o Brasil lidava com as incertezas da crise provocada pelo coronavírus. Em uma sala da Assembleia Legislativa, o governador do Rio de Janeiro se reunia com parlamentares para debater a questão. Um dos seguranças se aproximou de um homem branco e perguntou: “Quem é aquela ali do seu lado? Assessoras não podem ficar, é uma reunião exclusiva para deputados.” Ao lado, quem estava era Dani Monteiro. Jovem, negra, favelada. Parlamentar. Se hoje é grande a discussão sobre anti racismo entre brancos, estimulada pelo movimento nos Estados Unidos, para ela a luta sempre existiu, cotidiana e bem brasileira, e com ainda mais força desde que ocupa um espaço de poder.
“Agora não acontece mais, porque já nos conhecem, mas já aconteceu de sermos barradas, desqualificadas pela nossa forma de se vestir, pela nossa própria figura. É uma solidão que não é só relativa ao número de mulheres negras ali [no Parlamento] fisicamente, mas também uma solidão subjetiva”, avalia Monica Francisco, deputada estadual no Rio de Janeiro, ex-assessora de Marielle Franco e também ela, assim como Dani e Marielle, uma mulher negra.

Às duas, na Alerj, se junta ainda Renata Souza, ex-chefe de gabinete de Marielle e deputada estadual mais votada da esquerda no Rio em 2018. “Meu apelido na Alerj é ‘cheia de marra e nariz em pé’. Enfrento com a cabeça erguida, porque tenho muito orgulho da minha história. É importante falar que a violência política é cotidiana, constrange, adoece, mas precisamos estar nesses espaços, para apresentar nossa forma de fazer política, com pé no chão e certeza do que fomos fazer ali”, afirma Renata.

Quando chegou ao posto de vereadora na Câmara do Rio, uma das coisas sobre as quais Marielle falava era a solidão naquele espaço. Como mulher, negra, lésbica e favelada, criada no Complexo da Maré, ela carregava no corpo as pautas que defendia. Sua luta foi brutalmente interrompida com uma violação que atingiu justamente seu corpo.
Na noite de 14 de março de 2018, foi assassinada a tiros, em uma rua deserta do bairro do Estácio, na zona norte do Rio, quando voltava de um encontro entre mulheres negras que debatia direitos de moradores de favelas. O motorista dela, Anderson Gomes, também foi atingido e morreu. A polícia ainda não sabe responder quem foram os mandantes do crime.
“O recado mais potente que a Mari deu foi em sua forma de ser. Ela não era uma pessoa excepcional. Ela foi uma favelada que teve oportunidade e sorte, coisas que a maioria dos jovens favelados não tem. Não se trata de ser espetacular, e sim de ser uma pessoa comum. Da mesma forma, aconteceu comigo. Não cheguei apenas pelo meu esforço. Foi, também, oportunidade e sorte. O principal legado da Mari é que todos somos nós, negros e negras, somos sementes de liberdade”, comenta Dani Monteiro, que, aos 27 anos, conquistou o posto de mulher mais jovem a ocupar um cargo de deputada estadual na Alerj. Ela também era amiga e assessora parlamentar de Marielle, ao lado de Monica e Renata na equipe.

“O recado mais potente que a Mari deu foi em sua forma de ser. Ela não era uma pessoa excepcional. Ela foi uma favelada que teve oportunidade e sorte, coisas que a maioria dos jovens favelados não tem.”
Dani Monteiro, deputada
Hoje na Alerj, as três se fortalecem. “Sinto menos [essa solidão], porque tenho companheiras. Marielle, sim, era solitária. A gente via o quanto isso era doloroso. Vi Marielle chorando, saindo do plenário. Ela se sentia pouco respaldada”, relembra a ex-chefe de gabinete de Marielle. “A gente sabe que essa suposta solidão vem muito mais do que são nossas pautas políticas e do que o parlamento espera da política: uma reprodução de uma lógica nefasta e excludente”.
“A gente contribui com sororidade, falando ‘mandou bem’. É importante para a mulher negra ouvir isso. É sobre ser solidária, abraçar, estar junto na hora que a companheira vai fazer uma fala. Ficar para ouvir, para ela saber que não está sozinha e se sentir mais segura ao microfone”, completa Monica.
O trabalho das três, apontadas durante as eleições como sementes de Marielle, também reflete sobre a falta de representatividade na política. “É preciso que a memória que a gente traz no corpo das violações, da invisibilidade, seja ressignificada no parlamento, e que isso seja inspirador, assim como foi Marielle”, avalia Monica.
Na visão de Dani, mesmo quem pensa política pública para o todo, pensa a partir do local em que está. Por isso, os diferentes olhares e pontos de vista são tão relevantes. “A importância da representatividade está quando você avança na política pública, e aumenta os direitos desses segmentos da sociedade mais precarizados. Isso é um recado potente”.
“A gente contribui com sororidade, falando ‘mandou bem’. É importante para a mulher negra ouvir isso.”
Monica Francisco, deputada

“Nossa democracia não é de fato representativa, em um cenário em que mulheres, negros e negras, moradores de favelas e de periferias são a maioria, mas, pelo Brasil afora, esses segmentos estão ocupando uma parcela mínima do poder”, completa Dani.
Apesar da discrepância entre a população e seus supostos representantes, as deputadas enxergam uma tendência de melhora para o futuro. Um dos motivos para isso são as redes de fake news sobre a memória de Marielle, que não se cessam. São tentativas de associar a vereadora ao crime organizado. Para elas, isso é mais um reflexo de que o movimento segue com força política, o que deve ficar ainda mais nítido nas eleições municipais de 2020.
“Acredito que a conjuntura vem mudando muito rápido, de maneira muito forte. Há um clamor para que pessoas negras ocupem espaços importantes na sociedade. A negritude vem reivindicando seu espaço outrora arrancado de nós como possibilidade”, diz Monica.
“Depois do feminicídio político de Marielle, foi dado o recado: ocupem esse lugar com debate. As mulheres toparam esse recado e começaram a se movimentar, não só na política institucional, mas pensando: ‘o que eu posso fazer enquanto mulher na sociedade?’. Isso é muito importante. Há mais mulheres querendo votar em mulheres e mais mulheres querendo se candidatar”, avalia Renata.
Dani é mais cética. Olha para o futuro com “um pouco de coração apertado”. “O papel que eu desempenho hoje é de que meu mandato funcione como esperança”, diz ela, citando Eduardo Galeano: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos”.

A dor de reviver o 14 de março
Além de deputadas e ex-assessoras, Dani e Monica eram, antes de tudo, amigas de Marielle. No último mês de março, as celebrações da memória da vereadora foram canceladas por conta do coronavírus. As manifestações foram mais silenciosas, sem protestos e encontros nas ruas, e sim com faixas e flores amarelas espalhadas em pontos da cidade do Rio de Janeiro. Isso, no entanto, não tornou o dia mais fácil para elas.
“É como se o 14 de março de 2018 não tivesse terminado. Passaram dois anos, mas parece que não passou um dia. O entorno fica muito carregado”, diz Dani. “O 14 de março é sempre muito pesado, duro. Para a gente, é tão doído. E estranho, às vezes. Estive na inauguração da Casa Marielle. Todos estavam ali, foi lindo ver os pais da Marielle felizes, pois para eles é quase como tocar na filha. Mas ainda é doloroso. E ainda vai ser por muito tempo”, diz Monica.
A estranheza vem de reconhecer o tamanho do mito político que Marielle se tornou. As três conheceram a pessoa física, “generosa, trabalhadora, brava”, relembra Monica, emocionada. “A gente ainda tem como referência a Marielle, que não é essa do seriado, não é essa que todo mundo grita o nome e que a gente passa na rua e vê o rosto pintado na parede. É lindo, mostra a força dessa mulher, mas é estranho também. A gente ficava implorando para as pessoas prestarem atenção nas nossas ações. Agora, são milhares que aparecem só por ela”.
“A gente ficava implorando para as pessoas prestarem atenção nas nossas ações. Agora, são milhares que aparecem só por ela.”
Monica Francisco, deputada

“Ver que a Marielle se tornou uma heroína internacional causa susto, porque a gente só queria a Marielle viva, não queria a Marielle ícone. É difícil vê-la em diferentes lugares, mas a gente entende também que é preciso ter a simbologia. E estamos aqui para que essa simbologia não se perca num esvaziamento político. É assustador, mas ao mesmo tempo é um alento saber que o feminicídio político da Marielle não gerou o silenciamento de sua luta, o apagamento da sua história, pelo contrário”, avalia Renata.
Dani também sente essa força de Marielle com estranheza e dor. “Às vezes dói ver uma foto dela. Mas, se há algo de positivo nisso, é ver que o legado, a memória dela segue muito viva”. A data, apesar de triste, serve justamente para regar essas sementes de Marielle.