Depoimentos
A seguir, relatos de profissionais da cozinha que sofreram assédio e procuraram os perfis Machismo na Cozinha e Basta!
Adriana*, 25 anos, em depoimento ao perfil Machismo na Cozinha
Sempre tive uma relação de amor com a cozinha, desde meus 11 anos faço bolos. Fiz faculdade de gastronomia e comecei a trabalhar em restaurantes, mas por conta de tanto machismo e assédio que sofri, desisti da cozinha.
Na primeira entrevista que fiz na vida, em um restaurante em Curitiba, uma mulher me perguntou: ‘Nossa, você é tão magrinha, não vai dar conta’. Eu ignorei e fui embora.
Em outro restaurante, entrei como garde manger com mais dois meninos. Um deles era estagiário e sempre o ajudei, mas começaram boatos sobre nós. Uma pessoa da equipe comentou: ‘Por que você não faz uma boa ação e tira a virgindade dele, já que vocês estão tão próximos?’. E o sous chef achou engraçado. Eu fiquei sem reação.
“Chegou ao ponto de um dia estar cortando uns legumes e um cozinheiro passou esfregando o pau dele na minha bunda. Eu fiquei em choque”
Adriana
Mas foi no restaurante seguinte que vivi um inferno. Mesmo nomeada chefe da praça de acompanhamento, dois homens, mais velhos, não obedeciam a minhas ordens; aguentei a insistência de um garçom para sair comigo e depois descobri que era casado; ainda tive de lidar com o boato de que um dos cozinheiros tinha traído a mulher comigo e ela veio tirar satisfações, me mandou mensagem…
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Outro grande problema foi o sous chef. Ele me questionava o tempo todo: ‘Você vai fazer isso da sua vida? Você não vai aguentar tanto tempo’. Falava que só fui contratada porque sou bonita. E quando eu não conseguia carregar as caixas de 20 kg de batata, me falava: ‘Ué, as mulheres não querem direitos iguais na cozinha? Por que então você não leva lá pra baixo?”. Era uma pressão diária.
Fui reclamar com o chef, que não dava mais. Ele me mudou de praça, mas aí começaram mais boatos. ‘Você sabe que ele te mudou porque ele gosta de você’, foi o que escutei da mulher do RH.
Chegou ao ponto de um dia estar cortando uns legumes e um cozinheiro passou esfregando o pau dele na minha bunda. Eu fiquei em choque. Não falei nada na hora, mas depois reclamei para o sous chef e ninguém fez nada contra ele.
Com tudo isso, eu passei a me inferiorizar. Eu não me maquiava mais, não me arrumava, perdi a vaidade. Comecei a não ser simpática com os homens.
Tentei pedir demissão duas vezes, mas o chef sempre me convencia a ficar. Um dia entreguei minha carta de demissão ao sous chef e ele disse: ‘Sabia que você ia sair’.
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Eu cheguei a relatar o assédio ao sindicato, assim como o excesso de horas trabalhadas. Mas eles falaram que eu precisava reunir provas e de testemunhas. É difícil ter provas de tudo e ainda depender de outra pessoa para comprovar, que pode perder o emprego por isso.
“Eu fiquei doente, emagreci muito, tinha muita infecção urinária porque não tinha tempo de ir ao banheiro”
Adriana
Quando consegui me desligar desse restaurante, depois de seis meses, estava deprimida e fui procurar ajuda. A psicóloga diz que minha autoestima estava baixa, por tudo o que aconteceu. Eu fiquei doente, emagreci muito, tinha muita infecção urinária porque não tinha tempo de ir ao banheiro. É um ambiente muito tóxico.
Mesmo assim, insisti na carreira e fui trabalhar em outro restaurante, também em Curitiba. Mas já na segunda semana um garçom veio me importunar, ficava mandando recadinhos amorosos. Quando descobriu que eu tinha namorado, veio tirar satisfação comigo! Mas desta vez o sous chef conversou com ele e o assédio parou.
Fiquei um ano lá e saí porque não estava recebendo nada em troca – muito trabalho, pouco reconhecimento.
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Hoje eu tenho meu negócio, faço bolos para festas. Se eu tiver algum restaurante, já sei tudo o que não vou fazer. Quero uma equipe só de mulheres, sem homens por perto.
Carol*, em depoimento ao perfil Basta!
O amor pela cozinha vem desde as refeições preparadas em família, não precisava de data festiva para cozinharmos juntos.
Mas só vi que seria minha profissão depois de desistir de outro curso e estudar confeitaria no Senac Rio. Trabalhei em uma chocolateria e logo depois fui para um restaurante em Búzios (RJ), dentro de um hotel estrelado.
Eu era a confeiteira e a única mulher entre os cinco cozinheiros, que me fizeram sofrer vários episódios de machismo, de assédio moral.
Por ser a última a sair da cozinha, tinha de checar tudo, já que o gerente do hotel fiscalizava na manhã seguinte. Mas sempre tinha algo sem arrumar, como panela gigante, imunda, para limpar. E sobrava pra mim. Não entendia por que todo mundo tinha de ir embora antes e ainda ter de arrumar bagunça dos outros.
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“Eu não podia falar nada, porque os cozinheiros eram protegidos do chef – eles saíam juntos, eram uma patota. Ficavam me chamando de “menina” e “garota”, enquanto eles eram os ‘caras’ e os ‘homens'”
Carol
Quando eu voltava da minha hora de almoço, percebia algo fora do lugar ou sujo na minha bancada, sem motivo, pois não tinha saído pedido. Ficava grilada e, um dia, vi pelas câmeras de segurança que os cozinheiros estavam me sabotando: abriam a geladeira e comiam coisas – por isso que a conta nunca fechava.
Eu não podia falar nada, porque os cozinheiros eram protegidos do chef – eles saíam juntos, eram uma patota. Ficavam me chamando de “menina” e “garota”, enquanto eles eram os “caras” e os “homens”. E eu ralava muito, queria provar que conseguiria ficar no trabalho, que ia ser ótimo para o meu currículo.
Um dia o chef me chamou para conversar: ‘Não sou machista, mas olha para suas mãos’. Fiquei sem entender nada, olhando para ele. ‘Isso não é mão de cozinheiro, não tem queimadura’. Indignada, eu falei: ‘Desculpa, chef, mas você quer que eu fique me queimando para mostrar serviço?’. E ele só disse: ‘É… você quer pegar as coisas com muito cuidado’.
Pior que ele não tinha reclamação profissional minha. Quando ele me demitiu, disse: ‘Você trabalha bem, acho que tem um bom futuro pela frente, mas você não se deu bem com o staff’. Muito provável que os outros cozinheiros tenham me queimado para o chef.
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No total, foram só dois meses que pareceram uma eternidade. Cheguei a vomitar de stress toda a semana. E nesse período, o chef ficou um mês de férias. Antes de ele sair, me disse: ‘Não quero você inventando nada na minha cozinha, tá?’. Mas quando ele voltou, perguntou: ‘Todo mundo fez algo diferente, por que você não fez nada?’. Depois que eu o relembrei da ordem dada, ele retrucou: ‘Mas se todo mundo tá fazendo, você também tem que fazer’.
“O que mais me perturba nessa história é que quem me indicou o trabalho em Búzios foi meu ex-namorado, que também é cozinheiro. Também vivi horrores com ele – me assediou e me agrediu. O pior: ele sabia de todo assédio no restaurante e, tempos depois, quando já não estávamos juntos, foi trabalhar lá no meu lugar e virou ‘melhor amigo’ dos cozinheiros”
Carol
O que mais me perturba nessa história é que quem me indicou o trabalho em Búzios foi meu ex-namorado, que também é cozinheiro. Também vivi horrores com ele – me assediou e me agrediu. O pior: ele sabia de todo assédio no restaurante e, tempos depois, quando já não estávamos juntos, foi trabalhar lá no meu lugar e virou “melhor amigo” dos cozinheiros. Na época eu fiquei louca, mas agora sei que ele está junto de seus semelhantes. Hoje tenho medo de cruzar com ele.
Depois de Búzios, fui fazer estágio em Portugal e lá me senti acolhida, todo mundo se respeitava. Foi importante para mim, pois cheguei a ter vontade de desistir da carreira. Tive dúvidas da minha capacidade, por tudo o que vivi.
Hoje, relatando minha história, é difícil separar o racional do emocional do que fica. São cicatrizes sensíveis. Como já passou um bom tempo, nem sei se dá para acionar juridicamente meu ex-namorado. E, sobre o restaurante, o chef é conhecido e eu vou me queimar – quem vai querer me contratar depois?
*Os nomes das vítimas foram alterados para preservar a identidade. Também não foram citados os estabelecimentos e o nome dos envolvidos.